O Chesterton escreveu um dia, anos depois de se converter ao catolicismo, que a sua vida se tinha transformado radicalmente, que desde então passara a viver permanentemente maravilhado, cada dia lhe trazia sempre uma novidade e um mistério por desvendar, e que ele acabava sempre por os desvendar a todos.
Eu compreendo perfeitamente este sentimento do Chesterton, o sentimento de ficar maravilhado por um pormenor que nunca tinha compreendido na vida, por uma questão que nunca me tinha ocorrido, por uma lembrança do passado e que ganha agora um novo e surpreendente sentido, pela descoberta de uma verdade que estava mesmo sob os meus olhos, mas de que eu nunca me apercebera. E este sentimento, que é ao mesmo tempo de mistério, excitação e deslumbramento, começa a ganhar o ritmo que encantara o Chesterton - ao menos uma vez por dia.
Aconteceu-me na sexta-feira. Voltou a acontecer-me hoje. O episódio de sexta-feira é, de longe, mais importante, mas também demora mais tempo a contar. Fica para depois. Conto agora o de hoje. Foi no duche, onde acabei por ficar quase meia hora, depois de ler aquela mensagem tão explícita e reconfortante do Catecismo: “Podes roubar, desde que seja para matar a fome, para te protegeres do frio ou para te abrigares das intempéries”. Posso roubar, até posso roubar...
E eu já tinha roubado alguma vez? Foi a resposta a esta pergunta que me deslumbrou. De repente vieram-me à memória alguns dos momentos mais felizes da minha criancice. Foi aí que aprendi a roubar, e roubei, roubei mesmo muitas vezes. E que divertido era roubar, era uma aventura, o risco, a excitação, o stress da organização, a acção, e depois o orgulho e o prazer de consumir os frutos do roubo. Não, nunca roubei sozinho. Roubava sempre em comunidade, roubava em quadrilha.
Eu nasci e cresci num bairro de Lisboa, Alvalade. Morava a cem metros do Palácio dos Coruchéus, que hoje abriga o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, e que na altura era uma central de lixeiros da Câmara. Para o espírito analógico de um católico, nem esta coincidência deixou de me encantar.
Eu compreendo perfeitamente este sentimento do Chesterton, o sentimento de ficar maravilhado por um pormenor que nunca tinha compreendido na vida, por uma questão que nunca me tinha ocorrido, por uma lembrança do passado e que ganha agora um novo e surpreendente sentido, pela descoberta de uma verdade que estava mesmo sob os meus olhos, mas de que eu nunca me apercebera. E este sentimento, que é ao mesmo tempo de mistério, excitação e deslumbramento, começa a ganhar o ritmo que encantara o Chesterton - ao menos uma vez por dia.
Aconteceu-me na sexta-feira. Voltou a acontecer-me hoje. O episódio de sexta-feira é, de longe, mais importante, mas também demora mais tempo a contar. Fica para depois. Conto agora o de hoje. Foi no duche, onde acabei por ficar quase meia hora, depois de ler aquela mensagem tão explícita e reconfortante do Catecismo: “Podes roubar, desde que seja para matar a fome, para te protegeres do frio ou para te abrigares das intempéries”. Posso roubar, até posso roubar...
E eu já tinha roubado alguma vez? Foi a resposta a esta pergunta que me deslumbrou. De repente vieram-me à memória alguns dos momentos mais felizes da minha criancice. Foi aí que aprendi a roubar, e roubei, roubei mesmo muitas vezes. E que divertido era roubar, era uma aventura, o risco, a excitação, o stress da organização, a acção, e depois o orgulho e o prazer de consumir os frutos do roubo. Não, nunca roubei sozinho. Roubava sempre em comunidade, roubava em quadrilha.
Eu nasci e cresci num bairro de Lisboa, Alvalade. Morava a cem metros do Palácio dos Coruchéus, que hoje abriga o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, e que na altura era uma central de lixeiros da Câmara. Para o espírito analógico de um católico, nem esta coincidência deixou de me encantar.
Naquelas ruas que cruzam a Avenida da Igreja, os prédios eram de dois andares e por detrás eram hortas, pertencentes aos moradores, pura propriedade privada, com todas as variedades de couves e de árvores de fruto, mas as mais frequentes eram as nespereiras e as figueiras. Também havia amoreiras para os criadores de bichos da seda, como eu, mas essas ficavam mais distantes, nas traseiras da Avenida do Brasil.
Naquelas ruas tranquilas de um bairro novo, construido pelo Estado Novo (os prédios pertenciam à Previdência Social), os miúdos brincavam na rua desde a mais tenra idade, a partir dos seis ou sete anos. E o que fazem os miúdos na rua? Jogam à bola, brincam aos cobóis e vão à chinchada.
Vamos à nêspera? Não, vamos antes ao figo. E a quadrilha assim partia, inicialmente desorganizada. Chegados lá, uns ficavam a avisar, não fôsse a dona aparecer à janela, ou, pior ainda, a nossa própria mãe; mas, por causa disso, normalmente roubávamos afastados de casa. Enuqnato uns ficavam a avisar, outros subiam às árvores, e outros ainda ficavam cá em baixo a apanhar a fruta. Revezávamo-nos, às vezes, nestas funções. Para quem ficava cá em baixo, a fruta parecia cair das árvores como se fosse do céu, uma autêntica dádiva de Deus.
Olhando para trás e à distância de cinquenta anos, aquilo que me maravilhou mais foi a mensagem cultural contida naquela aventura de crianças. Nesta cultura só morres de fome se fôres uma abécula. Podes roubar, desde que seja para comer. E para que fiques desde já preparado, não vá teres necessidade de o fazer um dia, vais já ser treinado. Fá-lo em comunidade, em quadrilha, e nunca sozinho. Só uns é que roubam, os outros não, porque se forem apanhados a autoridade terá dificuldade em saber quem roubou, e serão todos absolvidos; porque uns não estavam a roubar coisa nenhuma, estavam só ali a olhar (na realidade, a avisar), e os outros estavam só a apanhar a fruta que por milagre caía madura das árvores. Se algum dia necessitares de roubar por não teres dinheiro para sustentar a tua família, é assim que se faz. Ah, e um pormenor muito importante. Isto é só para rapazes, não para raparigas. Porque se, um dia, tiveres que roubar para dar de comer à tua família, és tu que corres o risco de ir parar à cadeia, não a tua mulher, porque ela é mais importante para cuidar dos teus filhos.
Naquelas ruas tranquilas de um bairro novo, construido pelo Estado Novo (os prédios pertenciam à Previdência Social), os miúdos brincavam na rua desde a mais tenra idade, a partir dos seis ou sete anos. E o que fazem os miúdos na rua? Jogam à bola, brincam aos cobóis e vão à chinchada.
Vamos à nêspera? Não, vamos antes ao figo. E a quadrilha assim partia, inicialmente desorganizada. Chegados lá, uns ficavam a avisar, não fôsse a dona aparecer à janela, ou, pior ainda, a nossa própria mãe; mas, por causa disso, normalmente roubávamos afastados de casa. Enuqnato uns ficavam a avisar, outros subiam às árvores, e outros ainda ficavam cá em baixo a apanhar a fruta. Revezávamo-nos, às vezes, nestas funções. Para quem ficava cá em baixo, a fruta parecia cair das árvores como se fosse do céu, uma autêntica dádiva de Deus.
Olhando para trás e à distância de cinquenta anos, aquilo que me maravilhou mais foi a mensagem cultural contida naquela aventura de crianças. Nesta cultura só morres de fome se fôres uma abécula. Podes roubar, desde que seja para comer. E para que fiques desde já preparado, não vá teres necessidade de o fazer um dia, vais já ser treinado. Fá-lo em comunidade, em quadrilha, e nunca sozinho. Só uns é que roubam, os outros não, porque se forem apanhados a autoridade terá dificuldade em saber quem roubou, e serão todos absolvidos; porque uns não estavam a roubar coisa nenhuma, estavam só ali a olhar (na realidade, a avisar), e os outros estavam só a apanhar a fruta que por milagre caía madura das árvores. Se algum dia necessitares de roubar por não teres dinheiro para sustentar a tua família, é assim que se faz. Ah, e um pormenor muito importante. Isto é só para rapazes, não para raparigas. Porque se, um dia, tiveres que roubar para dar de comer à tua família, és tu que corres o risco de ir parar à cadeia, não a tua mulher, porque ela é mais importante para cuidar dos teus filhos.
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