25 janeiro 2012

caridade católica

Eu gostaria de retomar neste post um tema que aflorei num post anterior - o elevado sentido comunitário da cultura portuguesa e católica. Na altura afirmei que os portugueses são melhores quando agem unidos e em comunidade. Numa cultura católica, como Portugal, não existe coisa ou talento no mundo que algum português não tenha. Uma população católica, quando está unida, acaba por ser o próprio mundo. Consegue tudo. Às vezes, até parece milagre.

É esta característica da cultura católica, e o seu modus operandi, que pretendo ilustrar neste post. Hesitei acerca do modo como o havia de fazer, citando episódios da história de Portugal, ou seguindo por outra via. Acabei por decidir citar-me a mim próprio numa altura em que decidira escrever em estrangeiro para, colocando-me dentro de outra mentalidade ou cultura, ser mais capaz de captar os traços relevantes da cultura portuguesa.

E isso leva-me de volta à história da Cristina Keller, cujo resumo interrompi aqui.

Tudo começou na última noite que o JCD passou na fazenda da família Calderón, em San Antonio de Aresgo, antes de regressar a Austin, Texas, no avião da manhã da United Airlines. A Cristina havia partido na véspera com a Iberia, de volta à Chamusca, Ribatejo, via Madrid.

Nessa noite, o casal Calderón já dormia a sono solto, Esteban até roncava, quando a sua filha Estela entrou silenciosamente no quarto do JCD queixando-se de insónias. Acabaram os dois por não pregar olho durante toda a noite. E foi então, no alvor dessa madrugada argentina, já só faltavam duas horas para avião, que a Estela, num assomo de caridade católica, o confortou ao ouvido: "Deja cariño... no te esfuerzes más ... es un jodillón ... el jodillón de las pampas...".

Nos meses seguintes, já em Austin, no Texas, o JCD não queria outra coisa. Chegava a interceptar pessoas desconhecidas na rua só pelo prazer de se apresentar: "Hi, pleased to meet you. My name is John Culvert Dwight, also known as El Jodillón de las Pampas".

Naquela manhã de Abril, o JCD contemplava pela primeira vez o sol e a luminosidade única de Lisboa, enquanto o avião da Continental Airlines cruzava o Tejo e percorria a final sobre o casario da cidade. Sentado do lado direito, olhando pela janela, entreteve-se por um momento a contar as igrejas que desfilavam à velocidade de 300 quilómetros por hora sob o seu olhar. Já ia em 27 - mesmo se a posição do avião ainda não lhe permitira vislumbrar a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, a da Praça de Londres, a do Campo Grande, a de S. João de Brito, a de Arroios e a Capela do Cemitério do Alto S. João -, quando teve um sobressalto.

Veio-lhe à lembrança aquela tarde no Jardim de la Recoleta, no centro de Buenos Aires, quando ele passeava com a Cristina e a Estela Calderón. Aquele seu cabelo loiro, o seu ar esbelto e elegante, a roupa colada ao corpo, as feições quase perfeitas, o andar meneando o rabo e aqueles gestos amaneirados a falar, chamavam logo a atenção num país cuja cultura era, na aparência - embora só na aparência - puro machismo. Ainda por cima num jardim público. E foi assim que um argentino de meia idade, camisa esbragalada e a barba por fazer, ao passar por eles, não pôde conter a sua raiva e gritou a plenos pulmões o sentimento de desigualdade católica que lhe ia na alma: "Carajo!...Un maricón con dos chicas más buenas ... y yo aqui sin ninguna...".

O JCD ficou imobilizado. Será que tinha ouvido bem, estaria ali aquele nome forte, em espanhol e terminado em ón, que ele procurava, e que era a razão de ser da sua viagem à Argentina? Perguntou à Estela o que é que o homem tinha dito. A Estela olhou para o ar e disse que não tinha percebido: "It's a fool, John, don't pay attention to him". Antes que o JCD pudesse reagir, a Cristina, do outro lado, agarrou-lhe o braço e voltou-o para ela, enquanto a Estela afogava entre as mão um riso incontido.

A Cristina falou então sem parar durante mais de meia hora sobre as enormes diferenças entre a língua espanhola e a língua portuguesa, até a pergunta do JCD se perder no tempo. Explicou-lhe tudo, com todas as minudências. Disse-lhe que o espanhol e o português eram línguas muito, muito diferentes: "Very, very different, John", enquanto a Estela, do outro lado, acenava afirmativamente com a cabeça. E até lhe deu exemplos. "Look, John, in Spanish they say hombre, man; in Portuguese we say homem. The Spanish say mujer, woman; the Portuguese say mulher". Abrindo os braços e olhando o céu, exclamou em português: "Muitíííssimo diferentes". "Muchíííssimo, Cristina", concordou a Estela em castelhano. Depois daquela explicação detalhada, no espírito do JCD ficou a convicção de que a diferença entre o espanhol e o português era maior, muito maior, do que a diferença entre a sua língua materna, o inglês, e o mandarim.

E agora, como é que ele se iria apresentar aos pais e aos amigos da Cristina, com um nome que eles não compreendiam? Podia até parecer má educação. Por isso, ao pisar o átrio do aeroporto da Portela, a sua primeira preocupação foi a de saber como se dizia El Jodillón de las Pampas em Português.

A história está contada aqui, em estrangeiro.

Passando por cima dos vários episódios, aos quais voltarei mais tarde, a conclusão principal a tirar - a verdadeira moral da história - tem duas componentes. Primeira, Nenhum dos portugueses que se juntam à volta do JCD - e chegam a juntar-se mais de quarenta -, sabe, individualmente, resolver o problema de como traduzir aquela expressão para português. Porém, em conjunto - em comunidade -, eles acabam por lá chegar.

Segunda, não apenas acabam por chegar à solução, como a solução emerge quase que por milagre. E o momento crítico é aquele em que um deles, que está envolvido numa bruta discussão acerca da localização das Pampas - se é na Venezuela ou é no México -, depois de tratar o outro respeitosamente por senhor, o manda f. sem qualquer cerimónia.

A solução para os problemas difíceis dos portugueses encontra-se em comunidade e, aí, ela acaba sempre por aparecer, às vezes como se fosse um milagre.

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