19 janeiro 2012

também temos disso



De todos os episódios intelectuais que me levaram à conclusão que Portugal é um país que tem tudo, um verdadeiro mundo em miniatura, aquele que recordo com mais prazer é o da Cristina Keller. Eu não sei bem por onde começar, porque as coisas já se passaram há vários anos, mas para os leitores novos do PC eu resumo brevemente a história.

A Cristina Keller é uma jovem mulher portuguesa de vinte e muitos anos. O apelido Keller é judaico, e estrangeiro, fazendo as delícias de qualquer português que se preze - ter um apelido estrangeiro e possuir raizes judaicas. (Mais tarde, apesar de judia, e também ateia, mas talvez por o seu nome próprio ser cristão, ela viria a tornar-se deputada ao Parlamento português por um dos distritos mais católicos do país).

A Cristina Keller tem um amigo americano, conhecido por JCD (o seu verdadeiro nome é John Culvert Dwight), de Austin, no Texas. O JCD é uma rapagão, como convém a um americano, mas um pouco inseguro. Em particular, ele acha que o acrónimo por que é conhecido, JCD (em estrangeiro, Jay Cee Dee, lê-se: Jei Ci Di) é muito efeminado, e anda à procura de um nome mais viril.

Ora, sucede que, há muitos anos, o avô materno do JCD, de nome Henry Culvert, tinha recebido no seu rancho do Texas, onde ainda hoje esta família de cowboys se entrega à criação de touros, uma delegação de gaúchos das Pampas da Argentina, que vinham aprender na América as tecnologias mais recentes para a criação e tratamento de touros.

Desde criança que o JCD se habituara a ouvir o avô contar histórias memoráveis desse dias passados no seu rancho com os gaúchos argentinos. E muitos deles tinham nomes ou apelidos terminados em ón, como Esteban Calderón, que possuía uma fazenda onde criava touros em San Antonio de Aresgo, arredores de Buenos Aires.

De tanto ouvir falar o avô, o JCD acabou por se convencer que um nome verdadeiramente viril era assim um nome terminado em ón, em lugar do seu efeminado Jei Ci Di. E assim partiu para a Argentina à procura de arranjar um nome forte e masculino, de preferência terminado em ón. Combinou as coisas com a família Calderón e até conseguiu que a sua amiga portuguesa, Cristina Keller, fosse também convidada. Certo dia, o JCD partiu de Austin, Texas, com destino a Buenos Aires, e a Cristina Keller partiu da Chamusca, Ribatejo, um dia depois, com o mesmo destino.

Havia já mais de duas semanas que estavam ambos instalados no rancho da família Calderón. O Señor Calderón tinha uma filha, de nome Estela. A sua esposa chamava-se Mercedes. Um daqueles dias decidiram ir jantar a um restaurante do centro de Buenos Aires. Eram quatro, Estebán Calderón, a sua filha Estela Calderón, o JCD e a Cristina Keller. A senõra Calderón decidira ficar em casa, alegando afazeres domésticos. É aqui que começa a parte relevante da história. (Veja aqui em estrangeiro).

Desde o início, que a conversa foi dominada pelos homens, e o tema eram os touros. O Señor Calderón dizia que os melhores criadores de touros no mundo eram os gaúchos argentinos. O JCD não podia concordar mais, e a par dos gaúchos só havia uma outra espécie de homens no mundo suficientemente bravos para lidar com touros - os cowboys do Texas.

Enquanto a conversa decorria, a Cristina Keller ia tentando dizer timidamente que "Nós lá em Portugal também criamos touros", mas ninguém lhe ligava. À medida que o Señor Calderón e o JCD avançavam na conversa, agora promovida a golpes de vinho tinto das Pampas, o Señor Calderón exaltando os talentos dos gaúchos na criação de touros, e o JCD o dos cowboys, a Cristina Keller ia-se tornando cada vez mais impaciente e metia tímida, mas reiteradamente, a colherada: "Nós lá em Portugal também temos disso". Mas ninguém lhe ligava.

Até que a certa altura, já no fim do jantar, e depois de beber muito vinho tinto das Pampas, o JCD perdeu a paciência com as constantes impertinências da Cristina, "Nós lá em Portugal também temos disso", e resolveu confrontá-la. Como era possível que um país que ninguém conhecia, como Portugal, que ele situou no Médio Oriente, criasse touros e tivesse criadores de touros, ainda por cima tão bravos como só cowboys e os gaúchos poderiam ser?

Era tudo o que a Cristina Keller queria, que lhe dessem atenção. Tirou da mala uma fotografia que, por momentos, manteve oculta na mão. E a tampa saltou-se. Sim, em Portugal havia criadores de touros, homens valentes que faziam tudo aquilo que os cowboys e os gaúchos faziam. Chamavam-se campinos e eram da sua terra, o Ribatejo. Não só criavam os touros, como domavam os touros, falavam com os touros, reconheciam direitos humanos aos touros, e ainda faziam aquilo que mais nenhuns criadores de touros no mundo conseguiam fazer, nem mesmo os gaúchos e os cowboys. Até davam beijos aos touros. E mostrou-lhes então a fotografia do primo, que era chefe de fila do Grupo de Forcados Amadores da Chamusca, a fazer uma pega de caras numa tourada em Santarém. Foi o silêncio à volta daquela mesa. Ninguém podia acreditar. Era como se fosse um milagre. Até beijavam os touros.

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