Uma das diferenças principais entre aquilo que tenho designado por cultura católica e por cultura protestante respeita à tradição. Escandalizados por muitas tradições abusivas da Igreja Católica do seu tempo, os reformadores protestantes do século XVI rejeitaram a Tradição e afirmaram o princípio "Só as Escrituras" (Sola Scriptura) como a única fonte verdadeira da Palavra de Deus. Em reacção, logo no Concílio de Trento, a Igreja afirmou que a Verdade sobre a palavra de Deus está nas Escrituras tal como interpretadas pela Tradição. A Tradição referia-se aqui não apenas à fidelidade que cada Papa jurava manter em relação à interpretação das Escrituras dada pelos seus antecessores, mas também às tradições orais que existiam mesmo antes de a Bíblia, e em especial o Novo Testamento, terem sido coligidos e à luz das quais foram interpretados.
Para os protestantes, a Palavra de Deus está somente nas Escrituras. Para os católicos, a Palavra de Deus está nas Escrituras e na Tradição. Os protestantes rejeitaram a Tradição. Ao fazê-lo, rejeitaram o passado. Em termos laicos, a maior consequência que resultou daqui é que os povos que seguiram a via protestante não dão qualquer importância ao passado, ao passo que os povos que seguiram a via católica atribuem uma importância considerável ao passado.
Nesta disputa, Portugal ficou do lado católico. O respeito pela tradição, pelo passado, é um elemento crucial da sua cultura, e nunca nada triunfou duradouramente em Portugal que fosse contra a tradição, apesar das várias tentativas que se fizeram a este respeito, sendo a governação do Marquês de Pombal talvez a primeira de grande envergadura.
Em termos filosóficos, é esta atitude de rejeição do passado que marca o início, e é a pedra de toque, da filosofia moderna. Descartes, o primeiro filósofo moderno, começa por declarar que passa a rejeitar tudo aquilo que veio do passado, e que só acreditará naquilo que puder ser demonstrado pela razão. É curioso que mesmo este traço essencial da cultura protestante - a rejeição do passado - tenha sido formulado por um homem que era católico. Naturalmente, a Igreja não viu com bons olhos a filosofia de Descartes.
O apego ao passado levou os países protestantes a olharem para os países católicos como países atrasados. Assim, por exemplo, o presbisteriano Adam Smith, fundador da Economia, no seu livro "A Riqueza das Nações" (1776), quando se refere a Portugal e a Espanha do seu tempo é para os apresentar como exemplos de países atrasados. A geração de 70 em Portugal não fez outra coisa senão chamar atrasados a Portugal e aos portugueses, e o Vasco Pulido Valente nas suas crónicas semanais no Público não costuma fazer outra coisa.
A verdade é um pouco diferente porque tem nuances. Sempre que Portugal abandonou as suas tradições para tentar imitar os países modernos (protestantes), isto é, aqueles que valorizam o que é novo em detrimento do que é antigo, atrasou-se. Pelo contrário, sempre que viveu de acordo com as suas tradições, avançou. Assim, na Primeira República houve essa tentativa e o país afundou-se. No período do Estado Novo, respeitador das tradições portuguesas, o país teve um progresso extraordinário, crescendo a um ritmo superior a qualquer país da Europa Ocidental. A experiência democrática (moderna) está a afundá-lo outra vez. A tal ponto, que em 1975, o primeiro ano que a ONU coligiu o Indice de Desenvolvimento Humano, e coincidente com o fim do Estado Novo, Portugal era o 24º país mais desenvolvido do mundo, longe, portanto, de poder ser considerado um país atrasado. Hoje é 41º (entre 200), certamente um bocado mais atrasado, mas, ainda assim, não atrasado de todo.
No fundo, como homem formado nos ditames da modernidade, eu gostava que isto fosse tudo ao contrário. Mas não é. É assim.
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