A concepção católica de liberdade é fundada na tradição, mas interpretada por um homem. A concepção protestante é fundada na lei, e interpretada pela comunidade (através do seu sistema jurídico, da sua opinião pública, ou de ambos).
Está aqui uma das vantagens da cultura católica em relação à cultura protestante - a sua flexibilidade ou adaptabilidade. Um homem possui uma capacidade para se adaptar à realidade que não assiste a uma comunidade. A Igreja Católica, como instituição, é o próprio exemplo dessa capacidade. Passou por tudo, adaptou-se a tudo, sobreviveu a tudo. Não existe outra instituição pública com semelhante currículo na história da civilização, e talvez da humanidade.
Assim, por exemplo, nos séculos seguintes à reforma protestante, quando a comunidade católica era atacada de vários lados com uma violência extraordinária, a liberdade católica sofreu várias restricções. Foi uma atitude de defesa. Pelo Index dos livros proibidos passaram Kant, Marx - cujas ideias, vale a pena acrescentar, eram genuínas inimigas da cultura católica - e muitos outros, mas logo que o perigo desapareceu, ou se atenuou, essa porção da liberdade foi rapidamente restabelecida.
Não é porém da liberdade que eu pretendo tratar neste post. É da flexibilidade católica, para argumentar que, se a flexibilidade constitui uma das principais vantagens da cultura católica, ela constitui também o seu principal calcanhar de Aquiles quando um país de cultura católica abandona a sua tradição de vida, e decide viver de acordo com as concepções protestantes. Estou a pensar, naturalmente, no Portugal post 25 de Abril, ou no Portugal do período liberal (1820-1926).
A cultura católica é uma cultura feita por homens de elite e presidida por homens de elite, o arquétipo sendo o Papa. Aquilo que distingue um homem de elite do povo na cultura católica é a sua capacidade de julgamento. O povo não possui nenhuma. Esta incapacidade de julgamento não resulta de nenhum defeito de nascença, mas da sua própria cultura católica, a qual, na sua ambição de universalidade, o leva a aceitar indiscriminadamente - na realidade, a desejar - tudo aquilo que há no mundo.
É à elite que compete exercer julgamento no meio deste caos de aceitação generalizada, e distinguir o bom do mau, o próprio do impróprio, o temporário do permanente, o aceitável do inaceitável. À elite compete decidir, respeitando a tradição e fazendo uso da flexibilidade que permite ajustar as ideias e as instituições às circunstâncias presentes, o que é liberdade, o que é a responsabilidade, o que é a justiça, o que é a própria função do Estado na sociedade, etc. Porém, é ténue a fronteira entre o que é flexibilidade e o que é abuso da flexibilidade - a banalização e, em última instância, o abandalhamento.
Substitua-se, então, nesta sociedade de cultura católica, a elite pelo povo (directamente ou através dos seus representantes), isto é, institua-se um regime democrático nesta sociedade, e em seguida deixe-se passar o tempo. O que vai ser a liberdade nesta sociedade? Tudo - o que na prática significa que não haverá liberdade nenhuma. E a responsabilidade? Idem. E a justiça? Idem. E qual é a função própria do Estado? Todas as possíveis e imaginárias.
O povo arrasa tudo pela sua incapacidade de julgamento. Mas isto, não é de mais insistir, não é o resultado de nenhum defeito de carácter, mas da sua própria cultura. É talvez por isso que as grandes belezas da cultura católica nunca estão à vista (cf. aqui). Estão escondidas. À vista, o povo rapidamente as banaliza, as abandalha e as destrói.
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