23 outubro 2010

nunca é o que parece

Antes de me debruçar sobre a concepção católica de liberdade, eu gostaria de voltar à ideia de tradição que aflorei brevemente neste post. No seu sentido católico mais estrito, a Tradição representa a interpretação que, ao longo dos séculos, a Igreja deu às Escrituras, através das suas elites e em útima instância através da autoridade suprema e absoluta dos seus Papas. Neste sentido estrito, a Tradição representa as próprias Escrituras, a palavra de Deus.

Aquilo que os protestantes fizeram, ao romper com a Igreja Católica, foi romper com a Tradição, e portanto com o passado. Aquilo que caracteriza os escritos dos filósofos da tradição protestante - um John Locke, um David Hume, um Adam Smith, um Kant, um Marx - é a ausência total de referências ao passado, excepto para desancar nele. É que estes filósofos tinham pela frente uma tarefa árdua, seguramente estimulante, à qual eles se lançaram com todo o entusiasmo - construir um mundo novo, um mundo melhor do que o passado, e independente do passado.

Foram britânicos e alemães os mais aplicados nesta tarefa, e daí surgiram o Liberalismo anglo-saxónico e o Socialismo alemão. São ambos produtos puramente intelectuais, sistemas de ideias, verdadeiras ideologias, projectos de vida em comum que não possuem qualquer referência à forma como as pessoas sempre viveram. Estão baseados em ideias desligadas da realidade, e não nos factos da realidade humana. Pelo contrário, a doutrina católica sempre se manteve realista, indissociável da tradição, da maneira como a humanidade sempre viveu, dos erros que cometeu, das instituições que funcionaram e daquelas que não funcionaram.

O homem de elite da tradição católica - representado, em útima instância, pelo arquétipo da figura do Papa - é, por isso, em primeiro lugar, um intérprete exímio da Tradição, um homem dotado de uma capacidade de julgamento extraordinária, e um professor. Compete-lhe a ele discernir, por entre a variedade de experiências que a humanidade viveu no passado, o que é verdadeiro e o que é falso, o que é exagero e o que é moderação, o que é essencial e o que é acessório, o que é permanente e o que é temporário, o que é bom e o que é mau.

Esta é uma tarefa que só pode ser desempenhada por um Homem de elite. A razão é que a cultura católica, na sua ambição de universalidade, aceita tudo aquilo que há no mundo, e a doutrina católica acaba por ser, em útima instância, um exercício intelectual extraordinário, o exercício mais difícil e ambicioso que o intelecto humano alguma vez se propôs, que é o de compatibilizar tudo aquilo que é diferente, unir os contrários, fazer conviver os extremos. É neste sentido que o catolicismo tem sido descrito como a força da gravidade que puxa o pêndulo constantemente para a posição de equilíbrio.

O Papa Bento XVI personifica o catolicismo em mais do que um sentido. Em primeiro lugar como Homem de elite, um intérprete exímio da Tradição católica no seu sentido mais estrito, enquanto teólogo, professor e Homem de julgamento. Num sentido mais lato, ele reune na sua pessoa a essência da própria cultura católica. Na sua fisionomia e no seu intelecto, ele é talvez o mais protestante dos Papas que a Igreja produziu nos últimos séculos, e no entanto ele é também, entre os Papas modernos, o mais acérrimo defensor do catolicismo e da Tradição católica. Quem o ler dirá, à primeira vista, que ele está muito mais próximo de Aristóteles, do que de Platão. E, no entanto, ele prefere Platão a Aristóteles. Como teólogo, parece muito mais um S. Tomás de Aquino do que um Santo Agostinho. E, não obstante, ele prefere Santo Agostinho a São Tomás.

E isto leva-me ao último ponto do argumento. A cultura católica nunca é o que parece, nunca está à superfície. Para o intelectual que queira respostas rápidas e superficiais aos problemas da existência humana, a doutrina católica parece um horror, na realidade um caos. Acontece o mesmo a quem visita pela primeira vez um país de cultura católica. Porque a beleza da doutrina católica, a sua racionalidade, o seu realismo, a sua coerência interna, está escondida, à espera de ser descoberta. O povo nunca apreciará esta cultura: vive dela, não consegue viver sem ela, mas nunca chegará a saber porquê. Por isso, diz quase sempre mal dela. Esta doutrina foi construida, ao longo dos séculos, por homens de elite. Precisará sempre de homens de elite para a interpretarem, a apreciarem e a ensinarem. Entregue aos intelectuais do povo, será sempre maldita, banalizada e destruída.

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