24 outubro 2010

Esta diferença

A concepção católica de liberdade é definida pela tradição, tal como interpretada pela autoridade suprema e absoluta de um Homem - o Papa. Nesta concepção, não existe liberdade sem a existência de uma autoridade pessoal, e esta autoridade pessoal é ao mesmo tempo o garante da liberdade.
Na concepção protestante é a comunidade que tutela a liberdade, através das leis democraticamente aprovadas, no caso da concepção germânica, e através da opinião pública (expressa ou não em leis), no caso da concepção britânica.
Embora a autoridade pessoal do Papa possua, nesta como em outras matérias, a palavra final, o Papa não é livre para definir o âmbito da liberdade. Ele está vinculado à Tradição, num sentido estrito, ao entendimento que os seus predecessores, ao longo dos séculos, tiveram sobre a liberdade, e, num sentido mais lato, ao conteúdo que a comunidade católica ao longo dos tempos deu à ideia de liberdade.
Este vínculo à Tradição e, portanto, ao passado distingue radicalmente a liberdade católica da liberdade protestante de inspiração germânica ou luterana, em que não há nenhuma referência ao passado. Na concepção britânica, a fundação da liberdade na The Rule of Law ou na Common Law faz apelo ao passado e à tradição e aproxima-se mais da concepção católica. É por isso que se diz por vezes que os povos britânicos são tradicionalistas. E isso é verdade em comparação com os povos germânicos, porque verdadeiramente tradicionalistas são os povos de cultura católica.
A tradição católica de liberdade individual possui um conteúdo muito amplo. Ao abrigo dela, um homem pode fazer ou dizer tudo aquilo que quiser, com uma só restricção - a de não causar mal, seja de natureza física seja de natureza espiritual, a outro homem ou à comunidade. A liberdade católica exclui os comportamentos agressivos, e portanto destrutivos, não apenas em relação a outros homens, mas também em relação à comunidade. A blasfémia, por exemplo, não faz parte do domínio da liberdade católica.
E neste ponto também, a liberdade católica distingue-se radicalmente da liberdade protestante, seja na versão germânica seja na versão anglo-saxónica. A liberdade protestante inclui no seu âmbito a agressão, espiritual ou física, à comunidade, normalmente a outra comunidade. Na realidade, o protestantismo começou por ser uma ofensa ou agressão, primeiro de natureza verbal depois de natureza física, a outra comunidade - a comunidade católica, e esse foi o seu primeiro símbolo de liberdade.
Alguns episódios da história recente ilustram este ponto. Quando os alemães fizeram leis que, primeiro, discriminavam os judeus e depois os agrediam, tudo estava dentro do conceito de liberdade protestante, que inclui a ideia de ofender e agredir outra comunidade. Quando mais recentemente os americanos aprovaram leis para invadir o Iraque, estavam ainda no pleno uso da sua liberdade. Nos anos 80, Salman Rushdie refugiou-se na "liberdade" britânica para insultar a sua própria cultura muçulmana. Mais recentemente, o caso dos cartoons de Maomé, na Dinamarca, foi para os seus autores e para a população dinamarquesa em geral um exercício de liberdade. E ultimamente, as ofensas e os abusos que cairam sobre o Papa - o símbolo e o representante da comunidade católica - vindos sobretudo de Inglaterra, Holanda, EUA e Alemanha, acerca dos casos de pedofilia na Igreja, ilustram ainda esta faceta única da liberdade protestante. Nenhum destes comportamentos ofensivos ou agressivos em relação a uma comunidade cabe no âmbito da liberdade católica. São ofensas ou agressões, não são liberdade.
Esta diferença - a inclusão na concepção protestante de liberdade das agressões, espirituais ou físicas, a uma comunidade, e a sua exclusão na concepção católica - é bem capaz de ser, para efeitos práticos, a maior diferença entre as duas concepções de liberdade. E também aqui a concepção católica, apelando à tradição (passado) parece ser a única racional.
Nenhum homem existe no vazio. Ele é um produto da sua comunidade, foram os seus pais, avós e bisavós, os seus vizinhos, os seus professores, os seus colegas que contribuiram para ele ser aquilo que é hoje. Sem toda esta gente, contemporâneos e antepassados, ele não seria ninguém, na realidade, nem estaria cá. Por isso, nenhum homem é livre de ofender ou agredir a sua comunidade. Trata-se de um comportamento destrutivo para a comunidade e para ele próprio - pois, se a sua comunidade é má, porque razão haveria ele de ser melhor? A proibição de ofender ou agredir a comunidade não se aplica só à comunidade da família, dos vizinhos ou da nação porque na, concepção da Igreja, nós somos todos membros da mesma comunidade, a comunidade universal ou católica.

Sem comentários: