25 fevereiro 2010

de baixo para cima

Apesar de se afirmar Católica e ambicionar, portanto, o estabelecimento de uma comunidade mundial, não é na comunidade mundial que a Igreja coloca a sua ordem de prioridades. Pelo contrário, é naquela comunidade que se encontra no polo oposto do espectro comunitário em termos de extensão, a mais pequena de todas as comunidades humanas - a família - e é a partir daí e por ordem decrescente de importância que ela chega à comunidade universal.

A seguir à família vêm as associações (culturais, recreativas, assistenciais, religiosas, desportivas, profissionais, incluindo os sindicatos) as empresas, as cooperativas, as instituições de crédito mútuo, as corporações e só em último lugar o Estado. Em termos de organização política a comunidade preferencial da Igreja é também a mais pequena - a freguesia -, seguindo-se por ordem decrescente de preferência, o município, a região, a nação, o continente (v.g., União Europeia) e só em último lugar o mundo. Neste sentido, a opção preferencial da Igreja é a de que as comunidades humanas se organizem segundo um processo de bottom up, porque a casa universal que ela pretende realizar, como qualquer outra casa, constrói-se de baixo para cima, e não a começar pelo telhado.

Esta opção preferencial pela pequena comunidade e pela pequena instituição encontra a sua raiz no personalismo católico e no fim transcendental do homem, ao serviço do qual estão todas as comunidades humanas sem excepção. Na família cada ser humano tem um peso e é importante; no outro extremo, na comunidade mundial, o seu peso e a sua importância tendem a desvanecer-se.

À parte a família, que é uma comunidade natural, e a própria Igreja que é uma comunidade de origem divina, é importante salientar que a Igreja não tem instituições ou arranjos institucionais a propor, deixando essas matérias às próprias comunidades, em função das circunstâncias específicas de cada uma e das suas tradições, e estimulando neste âmbito a própria criatividade humana. Aos olhos da Igreja, as construções humanas são sempre precárias e efémeras e, por isso, também neste domínio, não existem soluções universais e permanentes.
A este propósito, uma menção especial é devida às corporações. Em Portugal, o pensamento social da Igreja tem sido frequentemente associado ao Estado corporativo mas esta associação é, em parte, abusiva. No início dos anos 30 quando a crise económica e financeira atingia o seu auge e a luta de classes se exprimia aleatoriamente nas fábricas, nas ruas, e até no aparelho do Estado, o Papa Pio XI publicou a Encíclica Quadragesimo Anno (1931) onde acolheu favoravelmente a ideia da instituição corporativa como meio de resolver a chamada Questão Operária, a luta entre operários e capitalistas. Esta instituição, congregando as organizações sindicais e patronais, seria a casa de família onde num ambiente pessoalizado e face-a-face as duas facções desavindas melhor poderiam resolver os seus diferendos, em lugar de o fazerem na rua ou em instituições que não estavam vocacionadas para isso, como as empresas ou o Estado.
A ideia é eminentemente razoável. Parece ser mais fácil resolver os problemas entre duas partes quando elas se encontram, se conhecem e partilham uma casa comum, do que na adversidade impessoal de quem não se conhece e não pode, por isso, ser sensível aos argumentos da outra parte e ter simpatia por ela. Salazar, que na altura estaria a preparar a Constituição de 1933, aproveitou a ideia e construiu o Estado Novo assente nas corporações e como um Estado corporativo. Porém, logo que a questão operária foi ultrapassada após a Segunda Guerra nunca mais a Doutrina Social da Igreja falou em corporações, porque as circunstâncias não mais as exigiam. Em termos de princípios, a Igreja não tem preferência nenhuma por um qualquer tipo de organização política de uma nação.
Aquilo que ressalta da Doutrina da Igreja é uma preferência em ver todos os processos sociais devidamente enquadrados institucionalmente, em lugar de os deixar em roda livre. Não será exagerado dizer que, por cada processo social (como a luta de classes ou o mercado), a Igreja recomenda uma instituição, seja para o enquadrar, seja para o controlar, e a preocupação é sempre a mesma - a de o pessoalizar e a de responsabilizar alguém pelos seus resultados.

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