21 julho 2009

Hans Kung


Nada melhor do que a Igreja Católica para mostrar como, quando a cultura católica é liberalizada, o resultado final é a anarquia doutrinal, uma filosofia de "anything goes" em todos os sectores da vida. Proponho-me para o efeito seguir o percurso intelectual de Joseph Ratzinger, e as suas relações com o seu colega Hans Kung, desde o Concílio Vaticano II.

Ratzinger tornou-se notado pela primeira vez quando, ainda com menos de 40 anos de idade, foi chamado como assistente do cardeal de Colónia, Joseph Frings, ao Concílio Vaticano II, e participou activamente nos trabalhos preparatórios do Concílio. Ficou então conotado como um jovem teólogo progressista fortemente favorável a uma certa liberalização da Igreja e à sua abertura ao mundo.

Ratzinger nasceu na Alemanha e foi educado na Alemanha, o país onde desde há quase seis séculos se faz com maior intensidade o confronto entre catolicismo e protestantismo. Ratzinger, embora católico, era então o produto intelectual típico deste país predominantemente protestante, que viria a produzir os maiores filósofos e alguns dos maiores cientistas da modernidade. Aberto à mudança, generoso, racional, optimista, acreditando que o mundo pode ser conduzido pela razão. (O Cristianismo como Religião da Razão e a compatibilidade entre a Razão e a Fé permanece ainda hoje um dos temas preferidos do Papa).

Foram muito seguramente estas qualidades progressistas que levaram o teólogo Hans Kung a mover influências para que Ratzinger fosse admitido como professor na famosa Faculdade de Teologia (Católica) da Universidade de Tubigen, onde Kung ensinava. Anos mais tarde, Ratzinger faria parte da comissão que retirou a Kung a licença para ensinar em nome da Igreja Católica. Mais alguns anos passados, quando Ratzinger era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Inquisição) Kung comparou-o ao chefe do KGB . Em 2005, quando Ratzinger já era Papa, juntaram-se os dois num jantar de reconciliação.

O que é que separou estes dois homens, qual dos dois mais mudou desde que foram companheiros intelectuais, e porquê? Quem mudou foi Ratzinger que, sendo chamado a ocupar funções institucionais na Igreja - algo que nunca aconteceu a Kung, que permaneceu um académico - viu gorado todo o optimismo acerca das transformações que ele próprio ambicionou no Concílio Vaticano II.

A abertura promovida pelo Concílio Vaticano II resultou rapidamente na maior anarquia doutrinal dentro da Igreja Católica, de que o próprio Kung se tornou um exemplo, defendendo militantemente a redução dos poderes do Papa e a sua substituição pelo poder colegial dos bispos. O papado, e a estrutura hierárquica da Igreja, constitui ainda hoje a maior crítica protestante à Igreja Católica. E, na realidade, ao ler as obras de Kung, fica-se na dúvida se o autor será um teólogo católico ou protestante, tal é a sua simpatia pela teologia protestante e pelas críticas protestantes à organização e a certos pontos da doutrina da Igreja (Cf., p. ex., Christianity - Essence, History and Future, New York: Continuum, 2008).

Na América Latina, a abertura promovida pelo Concílio foi rapidamente aproveitada pela Teologia da Libertação para fazer do catolicismo uma bandeira do marxismo e o movimento chegou a ter uma influência tal no Vaticano que, na sua primeira Encíclica - Laborem Exercens (O Trabalho Humano), 1981 - consagrada a temas económicos e sociais, o Papa João Paulo II ficou a pouca distância de advogar a luta de classes.

Nos EUA, com a sua aversão ao autoritarismo e ao centralismo, a abertura trazida pelo Concílio Vaticano II, foi de molde a fazer evoluir a teologia católica nas mais diferentes direcções. O teólogo Michael Novak publicou em 1981 um livro que ficou célebre - The Spirit of Democratic Capitalism - onde, sem rodeios, atribuía a pobreza da América Latina à cultura católica herdada de Portugal e Espanha, e onde já desde a década de 70 padres católicos defendiam o casamento gay, a homossexualidade, o aborto, mais ou menos à discrição.

Foi este ambiente de anarquia doutrinal que Joseph Ratzinger - o teólogo católico nascido e educado num país protestante e possuindo na sua personalidade várias características protestantes (o seu gosto pelo debate racional, a sua qualidade de doutrinador, a sua pouca tendência para pessoalizar as relações) - não previa pudesse resultar da abertura do Concílio Vaticano II, e pela qual ele se batera. Agora, na posição de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, competia-lhe zelar pela integridade da doutrina católica. E foi isso que ele fez e que, para alguns, constituiu a parte menos simpática da sua carreira. Presidiu à comissão que elaborou o Catecismo (1993). A mensagem era agora clara: "O Catolicismo é o que está no Catecismo. Quem sair desta fronteira não é teólogo católico e vai ter de ser disciplinado". Assim aconteceu, por exemplo com Leonardo Boff, o teólogo brasileiro e a cara mais conhecida da Teologia da Libertação.
.
Acabou-se a abertura. Apesar do poder que tinha para o fazer, apesar da consideração intelectual que tem por Kung, e que é recíproca, apesar da cordialidade do jantar de 2005, Bento XVI jamais restituiu a Kung a licença para ensinar em nome da Igreja Católica. Não fosse a acção decisiva de homens como Ratzinger, e o Concílio Vaticano II com a sua abertura teria transformado a Igreja Católica numa espécie de bordel doutrinal.

Sem comentários: