O pior defeito dos portugueses é a sua falta de julgamento. Esta falta de julgamento resulta da sua obsessiva concentração na verdade. Nos assuntos em que é possível chegar à verdade, não é sequer necessário julgamento porque a justiça está na verdade. O pior está naquelas situações em que não é possível nem fácil chegar à verdade. Aí cada português age como se tivesse a verdade e comete pelo caminho as maiores iniquidades.
O Joaquim neste post ficou admirado de, por causa da procura da verdade, os portugueses passarem por cima de todas as leis e violarem todos os princípios - literalmente, passarem por cima de toda a folha. O Joaquim que não se admire. Se um dia o povo português considerar que o Joaquim tem uma verdade que ele, povo, não tem, então é que o Joaquim vai ver como é. Vão-lhe escutar as conversas telefónicas, segui-lo, violar-lhe o correio até descobrirem a verdade. No limite, inventam uma série de boatos contra o Joaquim de tal modo que o Joaquim, meramente para se defender, vai ter de revelar a verdade.
A maior parte das iniquidades cometidas pelos portugueses são cometidas porque eles julgam possuir a verdade, e traduzem-se em humilhações, as quais geram ressentimento, e que põem os portugueses uns contra os outros. Basta deitar uma olhadela às caixas de comentários dos blogues abertos para ver que 90% dos comentários visam humilhar alguém e são escritos por outro alguém que está convencido possuir a verdade acerca de qualquer assunto.
Os portugueses possuem uma tal cultura de humilhar os outros por causa desta obsessão com a verdade que, mesmo sem o pretenderem, e até quando estão a fazer o bem, são capazes de humilhar alguém. Esta cultura de humilhação traz-me à memória um episódio que eu próprio vivi em Ottawa há cerca de 25 anos.
Ao abrigo da sua política de multiculturalismo, o governo Federal do Canadá tinha criado um programa de escolaridade suplementar para os filhos das comunidades de imigrantes no país. Estas crianças frequentavam a escola canadiana normal e aos sábados de manhã, facultativamente, tinha à sua disposição um programa suplementar de três horas em que lhes eram ensinadas três matérias, a língua pátria, a geografia pátria e a história pátria. O programa aplicava-se a todas as comunidades imigrantes em todas as cidades do Canadá e era inteiramente financiado pelo Governo Federal do Canadá.
No caso da comunidade portuguesa, os filhos dos portugueses residentes no Canadá, para além de frequentarem o sistema de educação normal canadiano, aos Sábados de manhã podiam frequentar um programa especial de três horas por semana, onde lhes eram ensinadas a Língua Portuguesa, a Geografia de Portugal e a História de Portugal. O Governo do Canadá cedia as instalações escolares, os autocarros para o transporte das crianças, pagava os professores, os livros e todo o material escolar.
Durante quatro anos eu fui o director da Escola Portuguesa em Ottawa. Munido do orçamento que o Governo do Canadá punha à minha disposição, eu seleccionava os professores (todos portugueses, obviamente) e, por volta de Junho, reunia-me com eles para preparar o novo ano lectivo, encomendando às livrarias em Portugal os livros e outro material escolar (v.g., mapas) de modo que tudo estivesse pronto para o início do ano em Setembro. E assim acontecia. Em Setembro começávamos o ano com livros novos e da nossa escolha, mapas, filmes sobre Portugal, etc., tudo novinho e pago pelo Governo canadiano.
Lá para Janeiro ou Fevereiro, já o ano lectivo ia a meio, o Ministério da Educação português, através da Embaixada, fazia chegar à minha Escola e a todas as outras no país, um carregamento de livros para serem utilizados pelas crianças portuguesas filhas dos emigrantes, como aquelas que frequentavam a escola que eu dirigia. E que livros eram esses? Eram livros velhos, livros em segunda ou terceira mão, livros que já não eram utilizados nas escolas portuguesas - eram esses os livros que o Ministério mandava para os filhos dos portugueses em Ottawa e no resto do Canadá.
Quando os livros me chegavam à Escola eu mandava-os deitar directamente ao lixo. Aquilo era a humilhação institucionalizada e sem se dar por isso, de tal forma ela estava incrustrada na cultura portuguesa. Pois se os livros já não serviam para as crianças portuguesas aqui em Portugal porque cargas de água haveriam de servir para as crianças portuguesas no Canadá? Quando o então secretário da Embaixada de Portugal em Ottawa, que hoje é Embaixador noutro país, me comunicava a chegada de mais um carregamento de livros vindos do Ministério da Educação, eu costumava gracejar com ele: "Olha, quando é que lhes dizes para meterem os livros no c_?".
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