10 abril 2009

acabou



Em posts anteriores eu tenho procurado demonstrar que a característica principal de uma sociedade democrática-liberal é o seu ênfase na equidade dos processos, mais do que nos resultados. Por isso, as instituições principais de uma sociedade democrática, como o sufrágio, a liberdade de expressão, o mercado ou a soberania da lei são instituições de justiça ou equidade - instituições que dão a todos as mesmas oportunidades -, e não instituições da verdade.
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A verdade possui uma importância secundária numa democracia-liberal. Dir-se-à até que uma das vantagens principais de uma democracia-liberal é a de permitir às pessoas viverem no erro porque é o erro que, em confronto com a verdade, torna as sociedades reformáveis. Uma sociedade assente na verdade, ou naquilo que se supõe ser a verdade, é irreformável.
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A história de Portugal ao longo dos últimos séculos tem oferecido o exemplo permanente de uma sociedade irreformável, em resultado da sua cultura firmemente assente sobre a ideia de verdade, que é típica da tradição católica. Em 1820 passou-se de uma regime autoritário para um regime democrático, não em resultado de reformas graduais, mas de uma revolução. A história portuguesa do século XIX é a história da alternância entre períodos de governação democrática e períodos de governação autoritária, não em resultado de reformas, mas em resultado de uma guerra civil e vários golpes de Estado. As revoluções de 1910, 1926 e 1974 mostram ainda que Portugal nunca foi capaz de reformar as suas instituições e as mudanças, quando ocorreram, foram sempre pela força.
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Na origem de todas estas convulsões esteve um profundo sentimento de injustiça, porque é este sentimento que leva às convulsões sociais nos países de tradição católica. A verdade, que está no resultado, ganha prevalência sobre a equidade, que está no processo, e um sentimento generalizado de iniquidade é gerado entre a população, o qual conduz à revolta. É certamente sintomático que os temas que presentemente dominam a imprensa portuguesa sejam questões de regime e instituicionais, como a questão da justiça, os poderes do Presidente, o sistema partidário, a corrupção nas instituições, etc. Nos países de tradição democrática, como os EUA, o Canadá ou a Inglaterra não são esses os temas da actualidade. Essas são matérias assentes e que ninguém põe em causa.
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Como tornar Portugal um país verdadeiramente democrático é uma questão mais complexa. Não basta que os portugueses se proclamem democratas e importem as instituições dos países democráticos, como tenho vindo a procurar demonstrar neste blogue. É necessário uma mudança de cultura e um alteração às vezes drástica nos comportamentos individuais. Alexandre Herculano forneceu a solução, que era a de educar as crianças tomando como livro-base os Evangelhos - os Evangelhos, note-se, e não o Catecismo da Igreja Católica. Por outras palavras, tornar os portugueses protestantes, porque educar as crianças segundo os Evangelhos, e não segundo o Catecismo, é precisamente aquilo que caracteriza os protestantes.
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Não me parece que esta solução seja viável. Por isso, eu não auguro futuro à democracia em Portugal. A grande diferença entre educar as crianças segundo os Evangelhos, ou segundo o Catecismo, é o ênfase que os Evangelhos põem na justiça ou equidade, em lugar da verdade. Mais importante para a realização de uma boa sociedade é o sentimento de equidade. Quanto à verdade, cada um tem de a julgar por si - e este pode bem ser o significado íntimo do silêncio de Cristo perante a pergunta de Pilatos "O que é a verdade?". É mais fácil avaliar objectivamente o que é a equidade - a qual é basicamente o respeito pela Regra de Ouro - do que aquilo que é a verdade.
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Pilatos não era um democrata porque se recusou a fazer justiça. Lavou as mãos perante uma iniquidade. Eu penso que este é o defeito cultural principal da tradição católica e também dos portugueses. Não sabem fazer justiça e convivem facilmente com as iniquidades até ao dia em que elas se tornam insuportáveis. Uma sociedade obcecada com a verdade, e em excluir o erro, acaba por não ter a noção do que é a verdade, e é incapaz de fazer justiça. Mas se a justiça é, precisamente, a ideia suprema de uma sociedade democrática, a incapacidade de fazer justiça significa que, na prática, a democracia acabou. O colapso do sistema de justiça em Portugal é o sinal de que a democracia acabou no país, excepto talvez no papel.

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