01 março 2009

a verdade está na populaça


Eu gostaria agora de reunir os meus dois últimos posts (aqui e aqui) para um comentário final, antes de passar a outro assunto. Resumindo, o sentido principal de obra de Kant é o de arbitrar ou julgar entre as teses opostas de Descartes e David Hume e responder à questão: "Chega-se à verdade pela razão ou pelo julgamento" (ou, alternativamente: "É a verdade objectiva ou subjectiva?").
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A sentença de Kant é favorável a Hume, e o meu propósito é concentrar-me na justificação dessa sentença: "os sentidos não erram, não porque julguem sempre correctamente, mas porque não julgam de todo". Refraseada na linguagem clara da cultura católica a justificação lê-se assim "Aquilo que julga melhor - os sentidos - é aquilo que não julga de todo". A minha questão é muito precisa: Como pode um filósofo - ainda por cima considerado o pai do racionalismo moderno - dizer uma coisa destas - aquilo que julga melhor é aquilo que não julga de todo?

Não é de mais salientar que eu não estou a falar de um filósofo qualquer. Estou a falar do filósofo que é também considerado o "filósofo do protestantismo". E a primeira conclusão a tirar é a de que é preciso ter muita fé para acreditar que aquilo que julga melhor é aquilo que não julga de todo (veja em baixo para exemplos). Se, na tradição protestante, representada pelo pensamento kantiano, a verdade se atinge pelo julgamento, e aquilo que julga melhor é aquilo que não julga de todo, esta tradição só pode dar uma importância desproporcional à fé, em detrimento da razão. A tradição católica afirma que a verdade se atinge pela razão; a tradição protestante sustenta que a verdade se atinge pela fé. Fica agora enfatizada a tese que enunciei num post anterior - a de que a tradição católica é uma tradição racionalista - e que posso agora complementar, afirmando que a tradição protestante é, em comparação, uma tradição fideísta.

Todas as culturas necessitam da fé para se sustentarem e a cultura protestante não é excepção. Mais difícil de explicar é como a generalidade dos intelectuais da cultura católica, como os portugueses, aceitam e elegem como símbolo do racionalismo e expoente máximo da razão um filósofo que substitui a razão pela fé no apuramento da verdade, um homem que na mesma frase é capaz de afirmar uma coisa e a sua negação ao mesmo tempo - aquilo que julga melhor é aquilo que não julga de todo? A resposta, talvez surpreendente, mas que demonstrarei mais adiante, é que Kant é o filósofo popular por excelência - ou, nas palavras do meu colega Joaquim, o "filósofo da populaça". Não existe filósofo moderno que dê tanta importância ao povo. Por isso, a explicação só pode radicar numa outra tese em que tenho vindo a insistir ao longo dos últimos posts, a saber, a de que num país de tradição católica, a "populaça" não possui julgamento - e a generalidade dos seus intelectuais não são excepção. Só assim se explica que um "racionalista" de terceira classe seja quase idolatrado.

Antes de explicar porque é que Kant é o "filósofo da populaça" gostaria de voltar à sentença de Kant: é pelo julgamento (isto é, pelos sentidos) que se chega à verdade e os sentidos não erram, não porque julguem sempre bem, mas porque não julgam de todo. No seu oposto, está a tese católica: é pela razão que se chega à verdade. O veredicto de Kant exclui que as decisões tomadas por uma pessoa ou autoridade pessoal (v.g., o primeiro-ministro de um Estado ou o seu ministro das finanças) possam chegar à verdade. Daqui a contestação que os economistas da escola do liberalismo moderno - como Mises e Hayek, dois kantianos por excelência - fazem à intervenção do Estado na economia. Daqui também a sua defesa dos processos impessoais na economia e na sociedade - como o mercado e a democracia - o que me leva de volta à tese de que de Kant é o "filósofo da populaça".

Se a decisão pessoal de um homem - como um primeiro-ministro, um ministro das finanças, um presidente, um Papa - não pode chegar à verdade, o que pode então chegar à verdade? A resposta que deriva de Kant é: algo que, fundado nos sentidos das pessoas, julga melhor por não julgar. Esta resposta conduz directamente aos processos impessoais, aqueles que, embora fazendo intervir o julgamento das pessoas, são tais que os seus resultados finais (julgamentos, idênticos à verdade) não são determinados pelo julgamento de nenhuma pessoa em particular. Estão neste caso a democracia e o mercado.

Quem sabe escolher o homem que, de verdade, é o melhor homem para governar um país? Não uma pessoa utilizando a sua razão. Mas a democracia porque, fazendo concorrer o julgamento de muitas pessoas - a "populaça" - produz um julgamento (a verdade, representada pelo vencedor das eleições) que não depende do julgamento de nenhuma pessoa em particular. Quem sabe determinar o verdadeiro valor das túlipas? Não alguma pessoa, utilizando a sua razão. Mas o mercado que fazendo concorrer o julgamento de muitas pessoas - a "populaça" - produz um julgamento (a verdade, representada no preço de mercado) que não depende do julgamento de nenhuma pessoa em particular. Em suma, a verdade está na populaça. Só por fé se pode acreditar que assim é.

Kant, o "pai do racionalismo moderno", o "racionalista" de terceira classe (cf. aqui), é o "filósofo da populaça", porque foi ele, mais do que qualquer outro, que deu importância à populaça. As decisões da populaça representam a verdade. E só se tornou célebre porque foi com ele, e sob o incentivo dele - a verdade está na populaça -, que a populaça decidiu também começar a filosofar, uma actividade que até então era reservada somente aos homens de elite.

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