Eu também apreciei a elevação e o bom nível de argumentação que o leitor David Erlich utilizou na refutação que deste meu post sobre o estado, e, por isso, vou tentar demonstrar que ele está errado nalgumas (em quase todas) das coisas que afirma.
1. Ao contrário do que diz, o relativismo ideológico e conceptual não é muito útil a quem queira utilizar algum rigor na análise dos fenómenos políticos. Eu sei que vivemos tempos conturbados, em que até o socialismo reclama a defesa do mercado, embora condicionado, é certo, e que já não tem a aversão à propriedade que o caracterizou no passado e que marcou toda a sua ideologia fundadora. Mas, lamento caro David, terá sido, nesse caso, o socialismo que se liberalizou e não o liberalismo que se socializou. As coisas são o que são, e as ideologias têm história e genética. O liberalismo clássico, admito, uma das duas formulações históricas do liberalismo europeu, possui uma identidade que não custa identificar. Não podemos, pois, misturar tudo, como se tudo fosse igual, porque não é. Nem nos pressupostos, nem nas metodologias, nem nas conclusões. Não custa, por isso, distinguir.
2. O poder público - e entendamo-lo como poder soberano, como ius imperii – é, obviamente, expansionista. Todo o poder o é, e, se me permite uma sugestão, já que é estudante de Ciência Política, recomendo-lhe, para a eventualidade de o não conhecer, ou não ter lido ainda, o Du Pouvoir, do Bertrand de Jouvenel. Este livro e o autor caracterizam bem o fenómeno do poder (não somente do poder político), afirmando, em contraponto cínico a Marx, que “a história não é senão luta de poderes”. Se o David duvidar disto, eu remeto-o para a História Política: o que é ela senão a constante e permanente conflitualidade entre quem governa e é governado? E o que foi a História do Constitucionalismo, senão a imposição de limites à soberania?
3. Em ponto nenhum do meu post, ou de qualquer outro que tenha escrito, o David encontrará a afirmação de que o poder público é naturalmente autocrático. A autocracia determina o exercício e não tanto o conteúdo da soberania. O que lê e lerá é que ele é tendencialmente totalitarizante, no sentido de que ocupará todo o espaço social se não lhe forem postos limites e barreiras. Quer uma demonstração disto? Olhe para a realidade portuguesa e mencione-me um único exemplo de uma função social em que o estado não interfira e o governo e o legislador possam dispor, se assim entenderem? Nenhuma, certamente.
4. Não há qualquer contradição entre considerar naturalmente expansionista e totalitário o poder soberano e dizer que ele deve ser constitucionalmente conformado. A não ser, como admito que seja a visão do David, que se considere a Constituição política de uma comunidade como a declaração unilateral da vontade soberana. Ou do princeps romano, se quiser, onde as teorias da soberania moderna se foram inspirar, como bem sabe. Por mim, ela será antes a declaração dos princípios e regras fundamentais que presidem à organização de uma sociedade política, e às relações dos indivíduos com o poder público, principalmente no que toca ao reconhecimento dos seus direitos fundamentais, e das suas liberdades e garantias perante o estado. Estas normas jurídicas fundamentais, quase metajurídicas, se quiser, não podem ser criação de espíritos iluminados, mas a constatação das normas evidentes que regem uma sociedade politicamente organizada. É a diferença, insisto, entre a Constituição Americana de 1787 e a Constituição Francesa de 1793. Ou entre a Constituição Inglesa e a Portuguesa de 1976. As primeiras duram há muito e, no essencial, mantêm-se estáveis e estabilizaram politicamente os seus países. A Constituição jacobina durou poucos meses, e a portuguesa por aí vai andando, desfigurada e retalhada em relação à versão original, para ser plausível.
5. A relação entre a extensão dos estados e a sua incapacidade de exercício de funções é por demais evidente. Todos os estados funcionalmente extensos têm problemas imensos na gestão dos seus recursos e das suas competências. Naqueles onde o poder é mais inteligente, vai-se aplicando o princípio da subsidiariedade, isto é, o estado só aparece quando a sociedade não é capaz de resolver. Mesmo no velho El Dorado do socialismo democrático keynesiano, a velha Suécia, onde o estado ia fazendo alguma coisa, é certo que à custa de absorver a quase totalidade do rendimento dos cidadãos, a lógica inverteu-se nos últimos anos e liberalizou-se muito consideravelmente a economia e a vida social. Em Portugal, o estado é incapaz de garantir aquilo a que constitucionalmente se obrigou. Infelizmente, à custa de tentar ir a todas e cada vez de ir a mais, o estado não consegue ir ao essencial. O exercício é simples: se a manta é pequena, neste caso os recursos e a capacidade de os administrar menor ainda, ou ficam de fora os pés, ou o tronco e os braços. E cada vez dá para cobrir menos, como se tem visto. Ainda hoje, o nosso estado social anunciava que, a partir de 2030, as reformas dos nossos pensionistas – obrigados a descontar, ao longo das suas vidas de trabalho, para o estado – será cerca de 54% do último ordenado. Grande justiça social esta, sem dúvida. E belos resultados de gestão.
6. Eu não nego que o estado possa e deva manter, com os imensos recursos do nosso trabalho que nos suga, uma serviço de saúde para aqueles que dele efectiva e comprovadamente careçam. Mas universal e gratuito, ultimamente “tendencialmente”, porquê? Porque hei-de eu, ou o David, pagar a saúde de quem pode e deve assegurá-la, por exemplo, por seguros eficazes de saúde? Acha que morreríamos todos doentes, sobretudo os mais pobres? Dou-lhe uma sugestão: venha ao Brasil, país onde o serviço de saúde público é, por vezes, miserável. Conte quantas pessoas não têm um plano de saúde eficaz. E vá ver como se tratam os brasileiros em comparação com os portugueses. Se me permite, caro David, eu fico muito feliz em saber que o SNS salvou a vida do seu Pai. Ainda bem. Mas, pergunto-lhe David, o SNS já matou quantos portugueses? Faz o David ideia de qual é o tempo médio de espera de uma operação de oncologia, para pessoas que infelizmente não podem esperar. Desgraçadamente, meu caro, o SNS está longe, muito longe de conseguir os bons resultados que o David teve na pessoa do seu Pai. Talvez deixar de o considerar universal e conjugá-lo com uma política fiscal que permitisse a dedução das despesas e seguros de saúde de quem o não frequenta fosse mais eficaz.
7. Termino-lhe dizendo duas coisas: que o cenário da Revolução Industrial que traçou desmereceu o resto do seu texto. Eu podia-lhe retorquir que foi essa mesma Revolução que permitiu a sobrevivência de inúmeras crianças que, pouco tempo antes, apenas entravam para as estatísticas da mortalidade infantil e que não tinham, assim, qualquer oportunidade de viver. Que foi essa mesma Revolução que fez engrossar as multidões humanas que se deslocavam para as cidades, para trabalharem nessas fábricas onde o David só vê exploração e miséria. Acha, então, que eles trocariam situações de vida melhores por piores? E, por último, que foi essa mesma Revolução que permitiu a sociedade de abundância onde, felizmente, todos hoje vivemos. Não foram, certamente, a Revolução de Outubro, ou a Revolução Francesa, ou a Cubana que trouxeram abundância e liberdade, mas, de facto, a Revolução Industrial e Capitalista.
8. A segunda e última coisa que lhe quero dizer é que em nada me repugnaria viver num estado mínimo de democracia censitária ou burguesa. Cuidasse ele do essencial – da defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, da liberdade, da propriedade, da segurança e da justiça – e não seria eu a opor-me a que tivéssemos direitos de voto diferenciados em função da nossa participação contributiva para manter o estado. Em nada me afectaria que o fulano X, que pagasse dez vezes mais impostos do que eu, tivesse dez vezes mais votos do que eu para designar aqueles que iriam gerir o seu, o nosso, dinheiro. Mas não ignoro que a democracia universal se transformou num pilar estruturante da sociedade liberal e democrática do nosso tempo. Por essa exacta razão, e porque o estado também se atreve a dispor sobre todas as facetas da minha vida, eu quero ter o mesmíssimo direito do meu vizinho a despedir do poder quem me está a incomodar em excesso.
1. Ao contrário do que diz, o relativismo ideológico e conceptual não é muito útil a quem queira utilizar algum rigor na análise dos fenómenos políticos. Eu sei que vivemos tempos conturbados, em que até o socialismo reclama a defesa do mercado, embora condicionado, é certo, e que já não tem a aversão à propriedade que o caracterizou no passado e que marcou toda a sua ideologia fundadora. Mas, lamento caro David, terá sido, nesse caso, o socialismo que se liberalizou e não o liberalismo que se socializou. As coisas são o que são, e as ideologias têm história e genética. O liberalismo clássico, admito, uma das duas formulações históricas do liberalismo europeu, possui uma identidade que não custa identificar. Não podemos, pois, misturar tudo, como se tudo fosse igual, porque não é. Nem nos pressupostos, nem nas metodologias, nem nas conclusões. Não custa, por isso, distinguir.
2. O poder público - e entendamo-lo como poder soberano, como ius imperii – é, obviamente, expansionista. Todo o poder o é, e, se me permite uma sugestão, já que é estudante de Ciência Política, recomendo-lhe, para a eventualidade de o não conhecer, ou não ter lido ainda, o Du Pouvoir, do Bertrand de Jouvenel. Este livro e o autor caracterizam bem o fenómeno do poder (não somente do poder político), afirmando, em contraponto cínico a Marx, que “a história não é senão luta de poderes”. Se o David duvidar disto, eu remeto-o para a História Política: o que é ela senão a constante e permanente conflitualidade entre quem governa e é governado? E o que foi a História do Constitucionalismo, senão a imposição de limites à soberania?
3. Em ponto nenhum do meu post, ou de qualquer outro que tenha escrito, o David encontrará a afirmação de que o poder público é naturalmente autocrático. A autocracia determina o exercício e não tanto o conteúdo da soberania. O que lê e lerá é que ele é tendencialmente totalitarizante, no sentido de que ocupará todo o espaço social se não lhe forem postos limites e barreiras. Quer uma demonstração disto? Olhe para a realidade portuguesa e mencione-me um único exemplo de uma função social em que o estado não interfira e o governo e o legislador possam dispor, se assim entenderem? Nenhuma, certamente.
4. Não há qualquer contradição entre considerar naturalmente expansionista e totalitário o poder soberano e dizer que ele deve ser constitucionalmente conformado. A não ser, como admito que seja a visão do David, que se considere a Constituição política de uma comunidade como a declaração unilateral da vontade soberana. Ou do princeps romano, se quiser, onde as teorias da soberania moderna se foram inspirar, como bem sabe. Por mim, ela será antes a declaração dos princípios e regras fundamentais que presidem à organização de uma sociedade política, e às relações dos indivíduos com o poder público, principalmente no que toca ao reconhecimento dos seus direitos fundamentais, e das suas liberdades e garantias perante o estado. Estas normas jurídicas fundamentais, quase metajurídicas, se quiser, não podem ser criação de espíritos iluminados, mas a constatação das normas evidentes que regem uma sociedade politicamente organizada. É a diferença, insisto, entre a Constituição Americana de 1787 e a Constituição Francesa de 1793. Ou entre a Constituição Inglesa e a Portuguesa de 1976. As primeiras duram há muito e, no essencial, mantêm-se estáveis e estabilizaram politicamente os seus países. A Constituição jacobina durou poucos meses, e a portuguesa por aí vai andando, desfigurada e retalhada em relação à versão original, para ser plausível.
5. A relação entre a extensão dos estados e a sua incapacidade de exercício de funções é por demais evidente. Todos os estados funcionalmente extensos têm problemas imensos na gestão dos seus recursos e das suas competências. Naqueles onde o poder é mais inteligente, vai-se aplicando o princípio da subsidiariedade, isto é, o estado só aparece quando a sociedade não é capaz de resolver. Mesmo no velho El Dorado do socialismo democrático keynesiano, a velha Suécia, onde o estado ia fazendo alguma coisa, é certo que à custa de absorver a quase totalidade do rendimento dos cidadãos, a lógica inverteu-se nos últimos anos e liberalizou-se muito consideravelmente a economia e a vida social. Em Portugal, o estado é incapaz de garantir aquilo a que constitucionalmente se obrigou. Infelizmente, à custa de tentar ir a todas e cada vez de ir a mais, o estado não consegue ir ao essencial. O exercício é simples: se a manta é pequena, neste caso os recursos e a capacidade de os administrar menor ainda, ou ficam de fora os pés, ou o tronco e os braços. E cada vez dá para cobrir menos, como se tem visto. Ainda hoje, o nosso estado social anunciava que, a partir de 2030, as reformas dos nossos pensionistas – obrigados a descontar, ao longo das suas vidas de trabalho, para o estado – será cerca de 54% do último ordenado. Grande justiça social esta, sem dúvida. E belos resultados de gestão.
6. Eu não nego que o estado possa e deva manter, com os imensos recursos do nosso trabalho que nos suga, uma serviço de saúde para aqueles que dele efectiva e comprovadamente careçam. Mas universal e gratuito, ultimamente “tendencialmente”, porquê? Porque hei-de eu, ou o David, pagar a saúde de quem pode e deve assegurá-la, por exemplo, por seguros eficazes de saúde? Acha que morreríamos todos doentes, sobretudo os mais pobres? Dou-lhe uma sugestão: venha ao Brasil, país onde o serviço de saúde público é, por vezes, miserável. Conte quantas pessoas não têm um plano de saúde eficaz. E vá ver como se tratam os brasileiros em comparação com os portugueses. Se me permite, caro David, eu fico muito feliz em saber que o SNS salvou a vida do seu Pai. Ainda bem. Mas, pergunto-lhe David, o SNS já matou quantos portugueses? Faz o David ideia de qual é o tempo médio de espera de uma operação de oncologia, para pessoas que infelizmente não podem esperar. Desgraçadamente, meu caro, o SNS está longe, muito longe de conseguir os bons resultados que o David teve na pessoa do seu Pai. Talvez deixar de o considerar universal e conjugá-lo com uma política fiscal que permitisse a dedução das despesas e seguros de saúde de quem o não frequenta fosse mais eficaz.
7. Termino-lhe dizendo duas coisas: que o cenário da Revolução Industrial que traçou desmereceu o resto do seu texto. Eu podia-lhe retorquir que foi essa mesma Revolução que permitiu a sobrevivência de inúmeras crianças que, pouco tempo antes, apenas entravam para as estatísticas da mortalidade infantil e que não tinham, assim, qualquer oportunidade de viver. Que foi essa mesma Revolução que fez engrossar as multidões humanas que se deslocavam para as cidades, para trabalharem nessas fábricas onde o David só vê exploração e miséria. Acha, então, que eles trocariam situações de vida melhores por piores? E, por último, que foi essa mesma Revolução que permitiu a sociedade de abundância onde, felizmente, todos hoje vivemos. Não foram, certamente, a Revolução de Outubro, ou a Revolução Francesa, ou a Cubana que trouxeram abundância e liberdade, mas, de facto, a Revolução Industrial e Capitalista.
8. A segunda e última coisa que lhe quero dizer é que em nada me repugnaria viver num estado mínimo de democracia censitária ou burguesa. Cuidasse ele do essencial – da defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, da liberdade, da propriedade, da segurança e da justiça – e não seria eu a opor-me a que tivéssemos direitos de voto diferenciados em função da nossa participação contributiva para manter o estado. Em nada me afectaria que o fulano X, que pagasse dez vezes mais impostos do que eu, tivesse dez vezes mais votos do que eu para designar aqueles que iriam gerir o seu, o nosso, dinheiro. Mas não ignoro que a democracia universal se transformou num pilar estruturante da sociedade liberal e democrática do nosso tempo. Por essa exacta razão, e porque o estado também se atreve a dispor sobre todas as facetas da minha vida, eu quero ter o mesmíssimo direito do meu vizinho a despedir do poder quem me está a incomodar em excesso.
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