04 março 2009

o intelectual catante


Eu gostaria agora de fazer uma aplicação à blogosfera das teses que tenho vindo a desenvolver ao longo dos últimos posts. O meu propósito é analisar o intelectual catante, que é o intelectual de cultura católica com pretensões a adoptar a cultura protestante e, em particular, duas das mais genuínas instituições desta cultura - a liberdade de expressão e a litigação - que se exprimem no debate.

Estabeleci antes que o intelectual de cultura católica é radicalmente intolerante, e que a intolerância descamba na violência. Como se comporta então o intelectual catante num debate e, mais geralmente, nos blogues que se afirmam abertos ao debate?

A primeira conclusão é que o intelectual catante entra para o debate com uma posição e sai de lá com a mesma posição, porque ele é radicalmente teimoso (intolerante). Duas hipóteses são possíveis quanto ao seu parceiro no debate. Ou o parceiro tem as mesmas verdades que ele e o debate converte-se então numa missa onde ambos rezam as mesmas orações, perdendo todo o interesse; ou o parceiro tem uma posição diferente, frequentemente oposta, e torna-se, então, aos olhos do catante, não um parceiro, mas um genuíno adversário. É este o caso que tem interesse analisar.

O catante expõe a sua posição e o seu adversário expõe outra diferente, iniciando-se o processo de litigação em que consiste o debate. Na tradição protestante, o juiz deste processo, para ser imparcial, deve ser um juiz impessoal, alguém que, como sugeriu Kant, julgue bem precisamente porque não julga de todo. O público é o juiz. Porém, como o intelectual catante está convencido que possui a verdade, ele não tem a mínima sensibilidade para submeter a sua posição a um julgamento imparcial. Julga ele e em causa própria. Já se sabe qual vai ser o veredicto. A dificuldade é que o seu opositor é também um intelectual catante, que vai proceder de igual modo. Estão agora em confronto duas verdades.

A verdade é o ideal supremo da cultura católica e o critério da moralidade nesta cultura. A marca distintiva do homem de bem nesta cultura é a sua adesão à verdade, e uma adesão temperada com julgamento. O intelectual catante vai então entrar pelo campo da moralidade para condenar o seu adversário que, no seu julgamento, não possui a verdade, ou então atribuir-lhe falta de julgamento, o qual é quase sempre fundado na ignorância. Os qualificativos mais comuns que atira ao seu adversário são, então: "isso que você diz é mentira"; "você é intelectualmente desonesto", "você só diz disparates"; "você é burro"; "você está maluco". Todos eles têm uma tónica comum: diminuir o adversário pessoalmente ou os seus argumentos com adjectivos de toda a espécie. Quanto a substantivos, isto é, argumentos que rebatam a posição do adversário, nem um.

O pior é que o seu opositor, que também é um intelectual catante, vai devolver-lhe na mesma moeda. O insulto é a primeira forma de violência no debate entre dois intelectuais catantes. E quem agride primeiro é aquele que mais convencido está da sua verdade - isto é, o mais intolerante. Nesta altura, os dois parceiros do debate já deixaram de ser sequer adversários, para se tornarem verdadeiros inimigos. Em condições extremas e de proximidade física prolongada, a violência física passa a ser a única maneira de resolver a questão.

Mantenho-me, porém, dentro da hipótese de afastamento físico entre os debaters catantes, como sucede na blogosfera. Se o intelectual catante possui um blogue, ele vai fechar o seu blogue ao inimigo e à facção do inimigo. Por isso é que, com raríssimas excepções, todos os intelectuais catantes que apregoam aos quatro ventos a sua liberdade de expressão acabam a instituir a censura prévia nos seus blogues. E nisto eles não são contraditórios. Eles são na realidade favoráveis à liberdade de expressão - mas não nos seus blogues - e por isso vão para os blogues dos outros exercer o seu amor à liberdade de expressão, fazendo aos outros aquilo que não toleram que os outros lhes façam a si - insultá-los. Em suma, eles são favoráveis à liberdade de expressão, desde que ela seja só para eles.

Na tradição protestante o debate é a maneira de se chegar à verdade, fazendo primeiro justiça aos argumentos de ambas as partes através de um processo de litigação justo (fair) e avaliado por um juiz imparcial - o público interessado. Para dois intelectuais catantes, o debate não produz nada disto - produz, primeiro, adversidade, segundo, inimizade e, finalmente, violência, sendo o insulto a primeira das suas manifestações.

Por isso, eu gostaria de oferecer aos jovens portugueses que me lêem, dois conselhos que derivam dos argumentos anteriores. Primeiro, se alguma vez vir um intelectual português a proclamar o seu amor à liberdade de expressão e ao debate, e o seu ódio à censura - é isto que caracteriza o intelectual catante - não acredite. Esse homem ou mulher, se lhe fôr dado poder, censura toda a gente, excepto a si próprio. Segundo, se num certo fórum público, como é a blogosfera, quiser identificar as pessoas mais intolerantes, não tem nada que enganar - as pessoas mais intolerantes são as mais insultuosas. Finalmente, e os raros blogues que permanecem abertos e resistem à censura, constituem eles uma ilha de liberdade de expressão? Não, longe disso. Nas sua caixas de comentários passam a predominar as pessoas mais insultuosas, por essa via censurando e inibindo as outras, porque é aí que elas dão verdadeira realidade ao seu amor pela liberdade de expressão.

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