17 março 2009

Balanço


Aquilo que caracteriza a sociedade portuguesa desde 1820, quando pela primeira vez foi implementada a democracia, é a sua permanente instabilidade, a qual está a ressurgir agora outra vez com os apertos causados pela crise económica e com a destruição que 35 anos de democracia produziram nas instituições.

Eu não conheço um autor que alguma vez tenha fornecido uma teoria coerente para este mistério, em parte porque os portugueses não são dados ao pensamento abstracto . Sempre que a democracia, desde 1820, se implementou no país, o país acabou mal. E da primeira vez até acabou muito mal, numa guerra civil. É essa teoria que eu tenho vindo a construir.

O meu ponto de partida é a cultura católica dos portugueses. Dos autores modernos que eu conheço e que se deram conta da importância de conhecer os portugueses, nenhum acabou a fornecer um quadro racional e lógico com capacidade explicativa e previsiva acerca dos grandes comportamentos da sociedade portuguesa, e , em particular, da instabilidade permanente dos últimos duzentos anos.

Alexandre Herculano só muito tarde se apercebeu da importância do factor cultural e católico para compreender Portugal, e deixou algumas observações sobre o carácter dos portugueses que, sendo verdadeiras, são insuficientes para construir um quadro explicativo coerente. Fernando Pessoa deu algumas contribuições importantes, devido à sua educação anglo-saxónica, mas não foi muito longe a compreender o povo português.
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Teixeira de Pascoaes foi mais longe, mas as suas observações acerca do que ele chamava A Arte de Ser Português, embora geralmente certeiras, relevam mais da sua sensibilidade de poeta do que de um quadro de análise racional e lógico. Salazar foi talvez o homem que foi mais além no conhecimento dos portugueses, mas ainda assim as suas observações, na maioria acertando no alvo, são ocasionais, desarticuladas e resultam do seu espírito observador e minucioso e das necessidades do ofício. Escusado será acrescentar que, na minha opinião, homens como Eça de Queiroz ou Ramalho Ortigão não fizeram sobre os portugueses qualquer observação original, e que não pudesse ser feita, embora talvez com menos talento, por qualquer homem do povo.

Assim, por exemplo, Salazar deu-se conta da falta de sentido de justiça do povo português, mas estava errado quanto à sua origem, que ele atribuiu à deseducação do povo (cf. aqui). A verdadeira razão da falta de sentido de justiça do povo português resulta da sua cultura católica e do extraordinário liberalismo e tolerância popular desta cultura.

Noutros casos, Salazar estava completamente errado, por exemplo quando atribui aos portugueses uma certa propensão para a abstracção (Prefácio do vol. III dos Discursos). Na realidade, a última qualidade que se pode atribuir aos portugueses é a capacidade para a abstracção. Aquilo que Salazar pretendia dizer é que os portugueses têm propensão para a fantasia, e são frequentemente fantasistas, uma característica que resulta ainda da sua incapacidade de julgamento.

Eu tive o benefício dos contributos destes homens que pensaram o português moderno antes de mim. Assim, a observação de Salazar acerca da falta de sentido de justiça dos portugueses intrigou-me durante muito tempo, quer quanto a saber se era adequada, quer, em caso afirmativo, quanto a saber a sua causa. Hoje, como tenho repetidamente afirmado, não só considero a observação adequada, como conheço a sua causa. Naquela observação, Salazar, sem o saber, estava a tocar naquele que é, de longe, o pior defeito dos portugueses - a sua radical incapacidade de julgamento ou falta de sentido de justiça - e do qual muitos dos outros defeitos menores dos portugueses são derivados.

A blogosfera foi também um benefício. Num blogue aberto permitindo a expressão livre ao ponto do anonimato, os portugueses que surgem a comentar exibem não apenas a sua cultura mas, por virtude da absoluta liberdade de expressão de que dispõem, fazem-no até ao exagero. Por isso eu tenho beneficiado bastante dos comentadores mais exagerados porque eles exibem certos traços da cultura portuguesa, às vezes ampliados mil vezes, e que numa pessoa normal e moderada não seriam tão claramente discerníveis.

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