25 fevereiro 2009

os factos


Os jornais continuam a preencher as primeiras páginas com notícias relacionadas com a justiça - e isso é mau sinal. Pior ainda, as notícias são por vezes indiciadoras de que a ruptura está próxima - aquelas que ilustram que o sistema de justiça português já não consegue condenar ninguém (1).

Gostaria, porém, de voltar ao tema da notícia do Público de hoje para perguntar, e responder, à questão: Porque é que existem 38 mil processos por julgar nos tribunais fiscais? A resposta é que existem tantos processos por julgar nos tribunais fiscais - como de resto nos outros tribunais do país -, porque os juizes portugueses não sabem julgar. E nem se pense que a situação é passível de reforma, porque o problema só se resolve quando se suspender a causa que lhe dá origem - a democracia. A Dra. Manuela Ferreira Leite tinha razão quando declarou que, para fazer certas reformas em Portugal, era necessário suspender a democracia.

Ao fazer a afirmação peremptória de que os juizes portugueses não sabem julgar eu devo ser mais específico para não parecer ofensivo. Em primeiro lugar, os juizes são parte do povo português, partilham a mesma cultura, e uma característica desta cultura - não é de mais insistir -, é a sua falta de sentido de justiça, a sua incapacidade radical para julgar, e os juizes portugueses, sendo parte dessa cultura, não podem ser excepção. Em segundo lugar, nesta incapacidade para fazer justiça, os juizes são tanto vítimas da cultura portuguesa como agentes activos dela.

Começo pelo seu papel de vítimas. A nossa é uma cultura dominada pela ideia de verdade e nós somos exímios a apurar a verdade, dando atenção a todos os pormenores, considerando todos os detalhes, retratando todas as circunstâncias, ouvindo todas as restemunhas com relevância para a determinação da verdade, ainda que as mais distantes. O resultado é que o processo quando chega às mãos do juiz para julgamento tem frequentemente dezoito volumes e catorze mil páginas. A questão óbvia é, então, a seguinte: qual é a pessoa que consegue ler, e ponderar adequadamente, catorze mil páginas de um processo, contendo milhares de factos - alguns importantes, a maioria de pormenor -, milhões de detalhes, centenas de circunstâncias e nuances, dezenas de testemunhos frequentemente incoerentes e, pelo menos, metade deles contraditórios? Ninguém, não há ninguém neste mundo que o consiga fazer.

E é precisamente esta conclusão que me conduz ao papel dos juizes como agentes activos desta cultura que é incapaz de julgar. Um julgamento - ou a justiça - não se faz assim, em processos de dezoito volumes e catorze mil páginas, contendo milhares de factos, pormenores, testemunhos e circunstâncias, cujo ruído torna impossível distinguir aquilo que é importante daquilo que é trivial e acessório. Um julgamento - ou a justiça - faz-se com base em dois ou três factos que são essenciais ou principais no processo. Isso exige, porém, não a atitude mental do português - e do juiz português - com a sua concentração excessiva e minuciosa nos factos (2), importantes e não importantes, a qual torna impossível distinguir o essencial do acessório. Isso exige uma atitude mental radicalmente diferente, uma atitude de afastamento (detachment) que é a atitude típica dos povos de cultura protestante - e, portanto, também dos seus juízes - , e que os leva a perguntar: "O que é que é importante aqui?". Tendo seleccionado os dois ou três factos - no máximo, meia dúzia, às vezes, apenas um - que são essenciais ou importantes no processo, a justiça passa a ser imensamente fácil de fazer na esmagadora maioria dos casos.
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(1) A capa do Correio da Manhã de ontem era assim: "Supremo liberta assassino de irmão", e juntava em subtítulo: "Tribunal superior defende que a prisão pode agravar estado psicológico do jovem de 18 anos que matou o irmão de 11 em 2007".
2) No Processo Casa Pia, a excessiva concentração nos factos foi ao ponto de se concentrar num sinal que um dos arguidos alegadamente tinha no pénis. Esta obsessão com os factos torna a justiça impossível porque um sinal no pénis, hoje em dia, é algo que rapidamente se põe ou tira.

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