22 fevereiro 2009

95 teses


Num post anterior estabeleci que a classe dos professores constitui a elite natural de uma sociedade de tradição católica e que a classe dos juristas é a elite natural de uma sociedade de tradição protestante. No post seguinte elaborei sobre a primeira. Neste post pretendo elaborar sobre a segunda.

Martinho Lutero (1483-1546) na Alemanha e João Calvino (1509-1564) na Suíça são geralmente considerados os fundadores do protestantismo, embora o movimento tenha antecedentes que remontam pelo menos a John Wycliffe (1320-1384) na Inglaterra e a John Hus (1372-1415) na Boémia. As "95 teses acerca do poder e da eficácia das indulgências" publicadas por Lutero em 1517 são, predominantemente, alegações (claims) de justiça, imputando à Igreja Católica abusos e crimes cometidos à luz dos Evangelhos.

Antes de prosseguir, um esclarecimento sobre o sentido da expressão "tese", porque esta é uma expressão genuinamente protestante e de difícil entendimento num país de tradição católica. Na tradição católica, uma proposição ou é verdadeira ou é falsa, não existe meio termo; uma tese não é nem uma coisa nem outra. É uma proposição à espera de verificação ou falsificação. É, por outras palavras, uma proposição à espera de julgamento.

Afixando as teses à porta da Igreja de Wittenberg, Lutero apelou claramente ao povo para que produzisse julgamento acerca das suas teses, e o povo assim fez. Não o povo em bloco, numa espécie de julgamento popular, mas certos homens que emergiram da sociedade e se mostraram particularmente dotados e preparados para pronunciar julgamento sobre elas. Estes homens eram, obviamente, juristas e as sociedades que viriam a adoptar a cultura protestante ficaram assim a olhar para eles, literalmente dependentes deles, até que produzissem julgamento. Tendo julgado as teses verdadeiras e dando por condenada a Igreja, os juristas tornaram-se a classe importante dessas sociedades e, de algum modo, o seu símbolo.(*)

É assim que os juristas - em particular aqueles cuja função é julgar, os juizes - emergem como a elite natural das sociedades de cultura protestante. E aquilo que se esperava deles é que realizassem, em primeiro lugar e acima de tudo, aquele ideal que estão particularmente vocacionados para realizar - a justiça. Se a sociedade católica exige da sua elite a verdade, sem a qual ele entra em anarquia e desaba, a sociedade protestante exige da sua elite a justiça, sem a qual ele entra na violência e se desmorona.

A tradição protestante é uma tradição que tem origem na litigância, como exemplificada pelas teses de Lutero. Mas para que uma sociedade que assenta na litigância possa sobreviver, e não resvale para a violência que resulta da justiça feita pelas próprias mãos, é necessário que as partes litigantes tenham confiança na sua capacidade para fazer justiça. Assim como a sociedade católica se funda numa fé inabalável - a capacidade do homem para chegar à verdade -, assim também a sociedade protestante se funda numa outra fé inabalável - a capacidade do homem para fazer justiça.

Noutra ocasião, descrevi a sociedade católica como uma sociedade que exibe unidade na sua pluralidade e a sociedade protestante como uma sociedade que exibe pluralidade na sua unidade. A pluralidade da sociedade protestante só é possível, porém, pela unidade que ela possui em torno da ideia de justiça. Somente quando todos aceitam que a justiça existe e é possível realizá-la, pode uma sociedade ser pluralista ou liberal, no sentido de permitir a cada um pensar como quer e viver como quer, irrespectivamente de como pensam e vivem os outros, e permitir tudo isso dentro de limites que são muito amplos, como o de que daí não resulte dano para terceiros. A razão é que uma sociedade assim diversificada está destinada a ser uma fonte inesgotável de conflitos entre interesses e proposições opostas, e só se manterá de pé se todos convergirem numa ideia comum - a saber, a ideia de que, se e quando esses conflitos surgirem, a justiça prevalecerá.
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A elite da sociedade de tradição protestante define-se pela sua intolerância em relação à injustiça , da mesma forma que a elite da sociedade de tradição católica se define pela sua intolerância em relação à não-verdade. É a intolerância em relação à não-justiça o critério demarcador daqueles que atingirão altos postos de comando nessa sociedade e daqueles que nunca lá chegarão. A obsessão com a verdade na sociedade católica encontra o seu equivalente na obsessão com a justiça na sociedade protestante.

O melhor professor está destinado a ocupar a posição no vértice do triângulo que representa a tradição católica (o da esquerda, aqui). O melhor juiz está destinado a ocupar a posição correspondente ao mesmo vértice no triângulo invertido que representa a tradição protestante (o da direita, aqui).
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(*) Calvino, ele próprio, era jurista e Lutero foi estudante de Direito.

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