23 janeiro 2009

anything goes


No interessante tema da relação das pessoas com a verdade que o Joaquim hoje levantou, eu tenho vindo a contribuir com a distinção que o seu post original sugere entre a cultura católica e a protestante (Portugal vs. EUA).

Resumindo algumas conclusões, na cultura protestante, a verdade é para todos. Pelo contrário, na cultura católica, a verdade é só para alguns. Nesta cultura, o homem comum, por princípio, não quer saber da verdade e, quando quer, só quer saber as verdades que lhe sejam convenientes. Quanto às outras, as que lhe desagradam, comunicar-lhas é fazê-lo infeliz, ofendê-lo ou ultrajá-lo. Esta é uma cultura que não tem apreço pela generalização da verdade. A verdade é um bem escasso só acessível a alguns, e para ser administrada com subtileza, equilíbrio e parcimónia.

Nesta comparação, eu posso ter dado a sensação de que a cultura protestante sai favorecida em relação à cultura católica. Não é isso, porém, que eu penso. Existem vantagens e inconvenientes nas duas culturas, na sua relação com a verdade, e é muito difícil, senão mesmo impossível, pronunciar julgamento acerca de qual delas é melhor.

Algumas vantagens da cultura protestante sobre a católica são óbvias e decorrem das suas diferentes relações com a verdade. Por exemplo, uma cultura de ciência só pode prosperar numa população em que as pessoas, generalizadamente, estão empenhadas na procura da verdade, como acontece na tradição protestante. Não pode nunca prosperar numa população em que as pessoas, generalizadamente, não estão habituadas a procurar a verdade, e frequentemente nem querem saber da verdade.

A democracia é outra vantagem protestante. Uma opinião pública forte e razoavelmente capaz de consensos, que é o motor da democracia, só pode prosperar onde haja tradições, entre o povo, de procura da verdade e do apreço pela verdade, como acontece nos países protestantes. Não pode nunca prosperar quando o povo fica à espera que venha algum messias que lhe sirva a verdade, como é o caso dos países católicos.

Passo agora a indicar duas vantagens da tradição católica sobre a protestante que derivam das suas respectivas relações com a verdade. A primeira é que as sociedades católicas são muito mais humanas, muito mais doces, tratam muito melhor as pessoas - às vezes iludindo-as ou mentindo-lhes -, do que as sociedades protestantes, onde o culto da verdade as torna frequentemente crueis. O caso apresentado pelo Joaquim é um exemplo. Mas qual o propósito de se dizer a uma pessoa que vai morrer para a semana? Que benefícios alguém pode retirar dessa verdade? Eu não vejo nenhuns. É uma pura crueldade cometida em nome da verdade.

A segunda é que o povo das sociedades católicas é imensamente mais tolerante do qe o povo das sociedades protestantes, tornando a vida nas primeiras muito mais livre e agradável. A razão é que o homem comum - o homem do povo - da sociedade católica está-se nas tintas para a verdade, não tem verdades de si mesmo e quando precisa de alguma, pergunta a quem sabe. No seio de um povo de cultura católica não existem ortodoxias, cada um tem as verdades que quer - se é que quer ter algumas. No seio deste povo, anything goes. Pelo contrário, nas sociedades protestantes, cada homem acredita na verdade e se acontece uma multidão de homens porem-se de acordo acerca de certas verdades, estas passam a ser verdades absolutas. É melhor que ninguém as ponha em causa, ou tente afirmar verdades diferentes, porque a reacção da multidão será então violenta, na realidade, crushing.

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