19 outubro 2008

não podiam passar sem eles


No seu livro The First Global Village, Martin Page faz uma observação que eu julgo importante para compreender a cultura portuguesa e, mais geralmente, a cultura católica. Referindo-se ao anticlericalismo que grassou em Portugal no início do século passado, ele afirma que pelo facto de os portugueses dizerem generalizadamente mal dos padres, certos políticos republicanos convenceram-se que os portugueses desejariam acabar com os padres e a Igreja. Afonso Costa fez mesmo leis nesse sentido e até chegou a antever a extinção da Igreja em Portugal no espaço de duas gerações. Enganou-se. Os portugueses protegeram os padres e a Igreja e quem foi expulso foram os políticos republicanos e anticlericais. Na realidade, os portugueses diziam mal dos padres porque não podiam passar sem eles - isto é, sem uma classe acerca da qual, consensualmente, pudessem dizer mal.

Eu não conheço a cultura interna da Igreja Católica, mas estou pronto a afirmar que os padres passam o tempo a rosnar contra o Papa, qualquer que ele seja, da mesma forma que os portugueses passavam o tempo a rosnar contra Salazar durante o Estado Novo. A cultura católica, inspiradora maior da cultura portuguesa, só encontra a unidade e a harmonia quando possui uma figura de referência em relação à qual todos estão de acordo na maledicência que praticam em relação a ela.

Os padres não participam na eleição do Papa, a qual é reservada a um colégio de cardeais. Não tendo tido uma palavra a dizer na escolha do Papa, os padres sentem-se livres para criticarem o Papa e dizerem mal dele. É nesta maledicência consensual acerca do Papa que assenta a unidade interna da Igreja. Se o sufrágio para a eleição do Papa passasse a ser estendido aos padres, eles deixariam de poder maldizer consensualmente o Papa, e passariam a dizer mal uns dos outros. A unidade da Igreja seria destruída e a instituição há muito teria desaparecido.

Salazar foi uma figura de unidade durante o Estado Novo precisamente porque todos se entendiam a dizer mal dele, e isto era assim porque a generalidade da população não participava na sua escolha. A partir do momento em que o Estado Novo cedeu o lugar à democracia e os governantes passaram a ser escolhidos pela generalidade dos portugueses, os portugueses nunca nais puderam ser consensuais a maldizer os governantes, porque agora eram eles próprios que, maioritariamente, os tinham escolhido. Não podendo maldizer os governantes, passaram a maldizer-se uns aos outros. A democracia aumentou o nível de conflitualidade social em Portugal, como argumentei em post anterior, porque deixou de haver uma figura acerca da qual todos os portugueses se entendessem a dizer mal dela.

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