Num post ontem editado n’ O Insurgente, ao qual dei o nome de «democracia», defendi que a democracia é um valor fundamental e estruturante do liberalismo clássico, apesar deste lhe ser sistematicamente muito crítico. Estas duas posições, em rigor as duas faces de uma mesma moeda, são exemplarmente enunciadas por Mises e Hayek, certamente os dois liberais clássicos mais notáveis do século XX, a quem é devido o ressurgimento contemporâneo do pensamento liberal.
Em O Socialismo – Análise Económica e Sociológica (Cap. III), Ludwig von Mises defende a democracia como garantia da paz social e política, enquanto método instrumental de designação dos governantes. Este livro é notável, não apenas pelo que contém, mas pelo ano em que foi escrito – 1922, revelando uma capacidade de análise e de antecipação do que seriam alguns dos problemas mais sensíveis do século passado. Comentando a crítica, então muito em voga num certo pensamento conservador, da suposta «natureza revolucionária» da democracia, Mises refere, invocando a finalidade anteriormente assinalada da democracia, que ela «não só não é revolucionária, como a sua função é precisamente extirpar a revolução». Garantir a paz é, assim, segundo Mises, «a função decisiva da democracia», concluindo, sem hesitações, que «o liberalismo implica necessariamente a democracia política».
Já Hayek é mais crítico em relação aos valores democráticos, menos pela natureza, em si mesma, do «princípio democrático», do que pela «sua errónea aplicação». A análise dos fracassos da democracia e da sua natureza enquanto princípio político e social, fê-la Hayek no terceiro volume do seu livro Legislação, Direito e Liberdade (o famoso LLL), prosaicamente intitulado A Ordem Política de um Povo Livre, cuja primeira edição é de 1979, uns bons cinquenta anos depois da primeira edição do referido livro de Mises. Hayek vê a democracia como «uma precaução sanitária capaz de nos proteger de qualquer abuso de poder», na medida em que «permite derrubar um governo e tratar de o substituir por um outro melhor». As reservas de Hayek começam com a identificação do ideal democrático com a convicção de que «o governo deve conduzir-se de acordo com a opinião da maioria». Para ele, encontra-se aqui a subversão do ideal democrático e a sua transformação numa perigosa ameaça à liberdade. Sem dúvida que tinha razão. Mas o mesmo já não podemos dizer sobre a sua duvidosa conclusão de que «uma democracia ilimitada pode ser muito pior que um governo ilimitado de tipo distinto». Isto é, de tipo não democrático ou, diríamos, ditatorial. Não o pode ser, obviamente, porque a ditadura exclui, por princípio, a limitação temporal dos mandatos políticos e a substituição pacífica dos governantes, ao passo que a democracia, mesmo que ilimitada, comporta em si mesma essa regra. Obviamente que se já não a respeita, já não é democracia. Hayek termina, de resto, muito mal esta sequência de deambulações sobre a «organização política de um povo livre», descrevendo no Capítulo XVII um «modelo de Constituição» de uma sociedade livre (é certo que de natureza utópica, como ele não deixa de assinalar), que é completamente artificial e de índole construtivista. Neste modelo, Hayek cria uma espécie de democracia de inspiração platónica, onde o principal órgão representativo seria uma «assembleia de homens e mulheres relativamente maduros, eleitos por períodos bastante amplos, por exemplo quinze anos, de modo que não estejam preocupados em ser reeleitos». Neste autêntico colégio de sábios, de homens e mulheres dedicados ao bem público e imunes às nefastas influências do jogo político, deveriam ter lugar pessoas apenas entre os 45 e os 60 anos de idade. Uma verdadeira claustrofobia política.
O que Hayek parece esquecer, ao contrário de Mises, nesta sua crítica ao igualitarismo democrático, é que ele é uma instituição que resulta da evolução natural das sociedades humanas, que o elegeram como o melhor procedimento socialmente exequível para a sua organização política. Ele nasce, por conseguinte, da ordem social espontânea, conceito transversal a todo o liberalismo clássico e ao qual, de resto, Hayek dedica muitas das suas melhores páginas. Se a «aplicação» do ideal democrático falha frequentemente, isso deve-se à natureza das coisas e do género humano, onde a infalibilidade não é, felizmente, regra.
Em O Socialismo – Análise Económica e Sociológica (Cap. III), Ludwig von Mises defende a democracia como garantia da paz social e política, enquanto método instrumental de designação dos governantes. Este livro é notável, não apenas pelo que contém, mas pelo ano em que foi escrito – 1922, revelando uma capacidade de análise e de antecipação do que seriam alguns dos problemas mais sensíveis do século passado. Comentando a crítica, então muito em voga num certo pensamento conservador, da suposta «natureza revolucionária» da democracia, Mises refere, invocando a finalidade anteriormente assinalada da democracia, que ela «não só não é revolucionária, como a sua função é precisamente extirpar a revolução». Garantir a paz é, assim, segundo Mises, «a função decisiva da democracia», concluindo, sem hesitações, que «o liberalismo implica necessariamente a democracia política».
Já Hayek é mais crítico em relação aos valores democráticos, menos pela natureza, em si mesma, do «princípio democrático», do que pela «sua errónea aplicação». A análise dos fracassos da democracia e da sua natureza enquanto princípio político e social, fê-la Hayek no terceiro volume do seu livro Legislação, Direito e Liberdade (o famoso LLL), prosaicamente intitulado A Ordem Política de um Povo Livre, cuja primeira edição é de 1979, uns bons cinquenta anos depois da primeira edição do referido livro de Mises. Hayek vê a democracia como «uma precaução sanitária capaz de nos proteger de qualquer abuso de poder», na medida em que «permite derrubar um governo e tratar de o substituir por um outro melhor». As reservas de Hayek começam com a identificação do ideal democrático com a convicção de que «o governo deve conduzir-se de acordo com a opinião da maioria». Para ele, encontra-se aqui a subversão do ideal democrático e a sua transformação numa perigosa ameaça à liberdade. Sem dúvida que tinha razão. Mas o mesmo já não podemos dizer sobre a sua duvidosa conclusão de que «uma democracia ilimitada pode ser muito pior que um governo ilimitado de tipo distinto». Isto é, de tipo não democrático ou, diríamos, ditatorial. Não o pode ser, obviamente, porque a ditadura exclui, por princípio, a limitação temporal dos mandatos políticos e a substituição pacífica dos governantes, ao passo que a democracia, mesmo que ilimitada, comporta em si mesma essa regra. Obviamente que se já não a respeita, já não é democracia. Hayek termina, de resto, muito mal esta sequência de deambulações sobre a «organização política de um povo livre», descrevendo no Capítulo XVII um «modelo de Constituição» de uma sociedade livre (é certo que de natureza utópica, como ele não deixa de assinalar), que é completamente artificial e de índole construtivista. Neste modelo, Hayek cria uma espécie de democracia de inspiração platónica, onde o principal órgão representativo seria uma «assembleia de homens e mulheres relativamente maduros, eleitos por períodos bastante amplos, por exemplo quinze anos, de modo que não estejam preocupados em ser reeleitos». Neste autêntico colégio de sábios, de homens e mulheres dedicados ao bem público e imunes às nefastas influências do jogo político, deveriam ter lugar pessoas apenas entre os 45 e os 60 anos de idade. Uma verdadeira claustrofobia política.
O que Hayek parece esquecer, ao contrário de Mises, nesta sua crítica ao igualitarismo democrático, é que ele é uma instituição que resulta da evolução natural das sociedades humanas, que o elegeram como o melhor procedimento socialmente exequível para a sua organização política. Ele nasce, por conseguinte, da ordem social espontânea, conceito transversal a todo o liberalismo clássico e ao qual, de resto, Hayek dedica muitas das suas melhores páginas. Se a «aplicação» do ideal democrático falha frequentemente, isso deve-se à natureza das coisas e do género humano, onde a infalibilidade não é, felizmente, regra.
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