Na véspera, quando me deitei, eu adormeci feliz que nem um anjinho. O argumento que iria apresentar estava finalmente claro no meu espírito, até as palavras estavam escolhidas a dedo - eu era capaz de o recitar mesmo ainda antes de o ter escrito. No dia seguinte, logo que tivesse uma oportunidade, iria passar à acção.
Escreveria dois posts. O primeiro era para preparar o terreno, e nele eu sintetizaria a posição da mulher na família convencional, colocando ênfase na sua capacidade para, em nome do governo da casa e dos filhos, extraír ao marido, ao fim de cada mês, e com uma regularidade religiosa, todo o seu ordenado, e fazer isso durante anos toda a vida. Controlando o rendimento da família ela era uma verdadeira patroa.
O segundo post seria o decisivo, em parte, pelo contraste. Fazendo questão, em nome da sua independência, de partilhar as despesas da casa com o marido, a mulher moderna renunciava à condição de patroa da casa e reivindicava, em lugar disso, uma mera posição de sócia com uma quota de 50%. Pior do que isso, é que enquanto a mulher tradicional levava todo o dinheiro ao marido no fim de cada mês, não lhe deixando no bolso montante que lhe permitisse grandes veleidades, a mulher moderna só lhe levava metade. A mulher tradicional era uma mulher cara aos olhos do seu marido. Pelo contrário, a mulher moderna era uma mulher barata, e o marido, pelo preço de uma, podia agora ter duas - ou mais.
Pelo caminho, um espigão: os maridos entregam tradicionalmente o dinheiro às mulheres, não principalmente em troca dos seus serviços domésticos ou em admiração pela sua craveira intelectual ou estatuto profissional, mas sobretudo em troca de um bem mais precioso - o sexo. Só que, enquanto ao marido tradicional isto lhe custava os olhos da cara, o marido moderno podia dispôr do mesmo bem a verdadeiro preço de saldo.
Logo que o post atingiu a blogosfera, ao princípio da tarde, eu fiquei expectante a olhar a caixa de comentários. Por momentos foi o silêncio absoluto. O primeiro a entrar foi o Euroliberal, racionalizando o argumento em termos da análise económica do direito - e a racionalização era correcta. Porém, por aquela altura, racionalidade era aquilo que menos havia em torno dos meus posts. Era a emocionalidade que prevalecia e da mais pura, ao extremo da cabeça perdida.
O post produziu o efeito que eu esperava, deixando a maioria dos leitores desconcertados. Os comentários oscilavam entre os dois extremos, da maior adversidade ao apoio entusiástico, embora com larga maioria dos primeiros. Ao fim de meia-hora, só uma expressão poderia descrever a situação do debate: c´était la bagarre.
As meninas foram logo das primeiras a aparecer. Era óbvio, para mim, que estavam desconcertadas. Os comentários eram curtos e intermitentes, utilizavam outros nicks ou o anonimato, estavam certas que era um argumento machista, mas não sabiam por onde lhe pegar. E logo desde os primeiros comentários ficou claro, pela insistência com que o faziam, que precisavam de uma líder, alguém que comandasse a grandiosa carga de cavalaria anti-machista que elas se preparavam para me entregar. Num curto espaço de tempo, elas tinham invocado, pelo menos por três vezes, a presença da zazie.
Entretanto, entre os outros comentadores, a zaragata continuava a subir de tom. O Euroliberal voltou à caixa de comentários para deitar mais umas achas na fogueira, dizendo que o meu argumento descrevia razoavelmente a realidade, e eu apressei-me a ir lá também colocar um comentário em jeito de agradecimento. O agradecimento não era ingénuo. O Euroliberal é o membro da blogosfera portuguesa mais eficaz a atraír a adversidade, estando eu, neste aspecto, num distante segundo lugar - um verdadeiro menino de côro ao pé dele. Esta aliança espontânea com o Euroliberal era garantia certa que a zaragata iria chegar ao rubro, porque estavam agora sozinhos de um dos lados da barricada, e à disposição da fúria de todos os outros, aqueles que eram, na altura, seguramente, os dois mais detestados participantes do blogue. E eu, que até àquele momento tinha estado a apanhar a lenha toda sozinho, pude então ir tomar café, enquanto o Euroliberal se ocupava da tarefa.
As meninas continuavam, entretanto, activas, com comentários sempre adversos, mas nunca decisivos, e escondidas sob diferentes nicks. A partir de certa altura, tinha-se tornado óbvio para mim que quem iria decidir a sorte desta batalha era a zazie. Em alturas anteriores, quando o tema tinha sido tratado, a zazie tinha-se sempre mantido a uma distância prudente dos modernismos das meninas. Mas agora que, segundo elas, eu tinha apresentado o argumento reaccionário e machista em toda a sua crueza e sem vergonha, será que a zazie lhes iria negar a solidariedade feminina que elas esperavam e mereciam?
Na realidade, elas tinham passado a tarde a preparar o terreno para entregar à zazie de bandeja, com elas todas atrás, a liderança daquela que seria a mais memorável carga de cavalaria anti-machista que a blogosfera portuguesa iria conhecer. E eu próprio, à medida que a tarde ia passando, ficava cada vez mais apreensivo. Era certo que as meninas e eu só convergíamos agora num aspecto - a expectativa pela chegada da zazie.
Até que, faltavam seis minutos para as seis da tarde, depois de nova actualização da caixa de comentários, brilharam no ecran aquelas cinco letras, seguidas de outras azuis, que são a marca distintiva da zazie. E o primeiro comentário começava assim: "ahahahaha ...Está tão engraçado este post...". Eu respirei fundo, enquanto do outro lado, as meninas devem ter entrado em estado de choque. Um minuto depois, um novo comentário, e este era avassalador: "ahahahahah... E elas queixam-se...".
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A partir dali, foi o caos. As meninas entraram em debandada enquanto a zazie, entre o divertido e o sério, ia atrás delas, pregando-lhes a maior sova de genuína cultura feminina, experiência de vida e maturidade que jamais uma mulher terá dado a meninas no mundo da blogosfera. Eu tinha ganho esta batalha, mas claro que perdi a guerra. Poucos dias depois, eu abandonava o blogue por entre uma monumental assobiadela, a qual incluía as meninas. Mas, neste primeiro ano de blogosfera, este é decididamente o meu troféu e, para o ganhar, tive de preparar o terreno aqui.
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