É uma dessas experiências que eu pretendo relatar aqui porque encerra duas lições singulares. Foi no início dos anos 80, eu teria cerca de 28 anos, fazia o meu doutoramento e ao mesmo tempo era assistente na Faculty of Business Administration (hoje, School of Management) da Universidade de Otava. Em certa altura, foi nomeado um novo Deão (Dean) da Faculdade, e que a iria governar durante os próximos sete anos. A Faculdade teria na altura cerca de três mil alunos e perto de duzentos professores, quase todos doutorados - talvez apenas meia dúzia de assistentes como eu a fazerem o seu doutoramento. Eu dava aulas de economia na licenciatura em gestão, no MBA e no MHA (Master in Health Administration).
Passaram-se os primeiros três meses e eu nunca tinha falado pessoalmente com o Deão, nem isso me precupava porque ele tinha na Faculdade gente muito mais senior do que eu para conhecer e trabalhar. Até que um dia recebi um telefonema da secretária dele, a comunicar-me que o Deão queria falar comigo, e se eu podia comparecer no gabinete dele no dia tantos às tantas horas.
Na minha cultura, ser chamado ao director não era geralmente um bom presságio. No dia e à hora combinada lá compareci, um tanto apreensivo. Ele era na altura um homem de perto de cinquenta anos, alto e forte; eu o típico português franzino. Depois de dois minutos de apresentação e conversa de circunstância, ele foi directo ao assunto e, com um certo sorriso nos olhos, disse-me:
-Olhe, a razão porque o mandei chamar é que tenho ouvido dizer entre os alunos, e mesmo entre alguns colegas, que você é um excelente professor e um grande comunicador...
Eu terei sorrido levemente e murmurado qualquer coisa em sinal de modéstia. (Os portugueses no estrangeiro são reputados pela sua modéstia, o que contrasta com uma certa tendência para emproar e aparentar quando estão entre os seus).
-E também tenho ouvido dizer que é um economista muito liberal, às vezes até um pouco radical...
Desta vez, o meu sorriso deve ter empalidecido um pouco.
Ele explicou-me que nos últimos meses tinha andado muito envolvido com trabalho administrativo e não tinha dado aulas. Mas tencionava voltar à docência e já no próximo semestre. (Ele tinha construído a sua carreira académica sobre a história económica do Québec, a província francófona do Canadá).
-Como professor, também não sou assim muito mau... - acrescentou.
(E isso eu sabia, pelo que tinha ouvido de quem o conhecia).
-Agora, não sou é assim tão liberal como você...
(E isso eu também sabia pelo que já tinha lido dele. E sabia mais: o primeiro programa do Rendimento Mínimo Garantido no mundo tinha sido criado em 1972 no Canadá e ele fizera parte da comissão que o idealizou e implementou; este programa viria a ser, mais tarde, replicado em vários países, como Portugal, embora aqui só no final dos anos noventa pelo mão do Eng. António Guterres).
-Então, o que pensei foi o seguinte. No próximo semestre, há uma cadeira de Política Económica no MBA, e queria convidá-lo a dar a cadeira comigo. Os alunos sempre ficam expostos a duas perspectivas diferentes da Economia...
-Está bem - disse eu, talvez um bocado acanhado. E perguntei:
-Mas como, o senhor dá uma aula e eu dou a aula seguinte?
-Não, damos os dois ao mesmo tempo...
Por esta, eu não esperava. Indaguei:
-Ao mesmo tempo, como?
Ele explicou:
-Sobre cada tema, eu faço uma apresentação e você faz outra, e depois pomos o assunto à discussão entre os alunos e eles decidem sobre qual das perspectivas gostam mais... Aceita?
-Está bem - respondi.
Saí do gabinete com um sentimento que era um misto de orgulho e apreensão, directo para a biblioteca. Eu não imaginava nessa altura que tinha começado ali a melhor relação académica que eu tive em toda a minha vida. Combinámos encontrarmo-nos na semana seguinte para tratar da logística.
As coisas iriam funcionar assim. Seriam doze sessões semanais de três horas cada uma. O tema para cada sessão seria alternadamente escolhido por ele e por mim. Uma vez escolhido um tema, ele preparava uma bibliografia sobre ele e eu outra, ambas sendo distribuídas aos alunos com uma semana de antecedência, afim de facilitar a preparação dos estudantes nos debates. Em cada sessão, cada um de nós faria uma apresentação com um máximo de 45 minutos. Seguir-se-ia um intervalo de 15 minutos. A segunda parte da sessão seria inteiramente consagrada a debate aberto, entre nós os dois, e com a turma.
Quando tomaram conhecimento do formato que a cadeira iria ter, muitos alunos correram a inscrever-se. E, no primeiro dia de aulas, lá estávamos os dois em pé, sobre o estrado, voltados para a turma, eu à direita dele.
-Your proper place, Pedro, is on my right - disse ele em voz alta, a suscitar o riso geral.
A idade média dos estudantes era de 30 a 35 anos, todos já licenciados em alguma área e muitos com experiência profissional em vários domínios. Alguns, já tinham sido meus alunos noutras cadeiras. Os mesmos que tinham andado a dizer bem de mim ao Deão, contemplavam-me agora com um sorriso nos lábios, antecipando o espectáculo.
Ao final de três ou quatro sessões, alguns estudantes já se dirigiam a mim ou ao Deão - mais a ele do que a mim - perguntando se podiam convidar amigos para assistir às sessões. Houve alguns que até levaram as mulheres e os maridos. Ao final da sexta ou sétima sessão, a sala estava apinhada e havia assistentes, em bicos de pés, do lado exterior da porta. Na sessão seguinte, mudámos para um anfiteatro.
Até que, ao cabo das doze semanas, a cadeira chegou ao fim. No final dessa sessão, a assistência levantou-se e presenteou-nos com uma imensa salva de palmas.
O ponto que eu gostaria de salientar não é o das palmas - porque palmas eu já tinha recebido em várias ocasiões anteriores. O ponto que eu gostaria de salientar foram as lições que eu retirei dessa experiência e que ficaram para sempre.
Primeira, no mundo das ideias e na sua discussão, não existem hierarquias nem distinções de qualquer espécie.
Segunda, e a mais importante de todas. Em muitas ocasiões do debate, as posições que exprimimos perante a audiência eram posições radicalmente opostas e atá antagónicas. Estavam ali um professor catedrático (full professor) e um mero assistente, o primeiro com idade e experiência para ser pai do segundo. Estavam ali o patrão da Faculdade e um mero empregado. Estavam ali também um cidadão canadiano altamente considerado e um jovem estrangeiro vindo de um país que possuía a reputação de ser um país situado entre o terceiro mundo e o mundo desenvolvido - e este a emitir opiniões categóricas, e quase sempre críticas, sobre vários aspectos da política económica do Canadá, um dos países mais desenvolvidos do mundo, incluindo o Rendimento Mínimo Garantido.
Nos momentos e nas situações em que o debate se tornou mais intenso e antagónico durante aquelas doze semanas, ele poderia ter utilizado qualquer destas diferenças, e o poder que possuía sobre mim, para desvalorizar os meus argumentos ou até diminuir a minha pessoa, acabando comigo, e saindo airosamente da situação - e eu teria aguentado e calado.
Nunca o fez. Tratou-me sempre como um igual. Ele ensinou-me que o debate intelectual puro e desinteressado, onde só os argumentos contam - e mais nada vale - não é uma miragem, e eu passei a acreditar nisso para sempre.
Nos anos seguintes, acabaríamos por realizar vários trabalhos em conjunto, até ao meu regresso a Portugal. No ano passado, quando o visitei em Ottawa, ele disse-me que nos sete anos que serviu como Deão da Faculdade, a maior perda que tinha tido no corpo docente, fui eu. Eu retribuí-lhe, confidenciando-lhe as lições que ele me ensinou para a vida.
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