14 setembro 2007

Gilles Paquet

Quando, aqui em baixo, eu indiquei numa série de posts os livros que mais me terão influenciado na vida, houve um momento em que eu verdadeiramente hesitei. Foi no post Ottawa. Eu iria entrar a descrever o período, o local e as circunstâncias daquele que foi, a grande distância de todos os outros, o período intelectualmente mais estimulante da minha vida.
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Abri então uma caixa de pandora e, agora, não há nada a fazer senão continuar. Foi em Ottawa, entre os meus 24 e 32 anos e o centro foi a Universidade de Otava. Não foram apenas a biblioteca aberta e a imensidão e a surpresa dos livros. Para um jovem académico ido de um país então razoavelmente fechado ao mundo, foi também a excitação de muitas experiências vibrantes e inesperadas que me marcaram para a vida - algumas delas eu gostaria hoje talvez que nunca me tivessem acontecido.

É uma dessas experiências que eu pretendo relatar aqui porque encerra duas lições singulares. Foi no início dos anos 80, eu teria cerca de 28 anos, fazia o meu doutoramento e ao mesmo tempo era assistente na Faculty of Business Administration (hoje, School of Management) da Universidade de Otava. Em certa altura, foi nomeado um novo Deão (Dean) da Faculdade, e que a iria governar durante os próximos sete anos. A Faculdade teria na altura cerca de três mil alunos e perto de duzentos professores, quase todos doutorados - talvez apenas meia dúzia de assistentes como eu a fazerem o seu doutoramento. Eu dava aulas de economia na licenciatura em gestão, no MBA e no MHA (Master in Health Administration).

Passaram-se os primeiros três meses e eu nunca tinha falado pessoalmente com o Deão, nem isso me precupava porque ele tinha na Faculdade gente muito mais senior do que eu para conhecer e trabalhar. Até que um dia recebi um telefonema da secretária dele, a comunicar-me que o Deão queria falar comigo, e se eu podia comparecer no gabinete dele no dia tantos às tantas horas.

Na minha cultura, ser chamado ao director não era geralmente um bom presságio. No dia e à hora combinada lá compareci, um tanto apreensivo. Ele era na altura um homem de perto de cinquenta anos, alto e forte; eu o típico português franzino. Depois de dois minutos de apresentação e conversa de circunstância, ele foi directo ao assunto e, com um certo sorriso nos olhos, disse-me:

-Olhe, a razão porque o mandei chamar é que tenho ouvido dizer entre os alunos, e mesmo entre alguns colegas, que você é um excelente professor e um grande comunicador...

Eu terei sorrido levemente e murmurado qualquer coisa em sinal de modéstia. (Os portugueses no estrangeiro são reputados pela sua modéstia, o que contrasta com uma certa tendência para emproar e aparentar quando estão entre os seus).

-E também tenho ouvido dizer que é um economista muito liberal, às vezes até um pouco radical...

Desta vez, o meu sorriso deve ter empalidecido um pouco.

Ele explicou-me que nos últimos meses tinha andado muito envolvido com trabalho administrativo e não tinha dado aulas. Mas tencionava voltar à docência e já no próximo semestre. (Ele tinha construído a sua carreira académica sobre a história económica do Québec, a província francófona do Canadá).

-Como professor, também não sou assim muito mau... - acrescentou.

(E isso eu sabia, pelo que tinha ouvido de quem o conhecia).

-Agora, não sou é assim tão liberal como você...

(E isso eu também sabia pelo que já tinha lido dele. E sabia mais: o primeiro programa do Rendimento Mínimo Garantido no mundo tinha sido criado em 1972 no Canadá e ele fizera parte da comissão que o idealizou e implementou; este programa viria a ser, mais tarde, replicado em vários países, como Portugal, embora aqui só no final dos anos noventa pelo mão do Eng. António Guterres).

-Então, o que pensei foi o seguinte. No próximo semestre, há uma cadeira de Política Económica no MBA, e queria convidá-lo a dar a cadeira comigo. Os alunos sempre ficam expostos a duas perspectivas diferentes da Economia...

-Está bem - disse eu, talvez um bocado acanhado. E perguntei:

-Mas como, o senhor dá uma aula e eu dou a aula seguinte?

-Não, damos os dois ao mesmo tempo...

Por esta, eu não esperava. Indaguei:

-Ao mesmo tempo, como?

Ele explicou:

-Sobre cada tema, eu faço uma apresentação e você faz outra, e depois pomos o assunto à discussão entre os alunos e eles decidem sobre qual das perspectivas gostam mais... Aceita?

-Está bem - respondi.


Saí do gabinete com um sentimento que era um misto de orgulho e apreensão, directo para a biblioteca. Eu não imaginava nessa altura que tinha começado ali a melhor relação académica que eu tive em toda a minha vida. Combinámos encontrarmo-nos na semana seguinte para tratar da logística.

As coisas iriam funcionar assim. Seriam doze sessões semanais de três horas cada uma. O tema para cada sessão seria alternadamente escolhido por ele e por mim. Uma vez escolhido um tema, ele preparava uma bibliografia sobre ele e eu outra, ambas sendo distribuídas aos alunos com uma semana de antecedência, afim de facilitar a preparação dos estudantes nos debates. Em cada sessão, cada um de nós faria uma apresentação com um máximo de 45 minutos. Seguir-se-ia um intervalo de 15 minutos. A segunda parte da sessão seria inteiramente consagrada a debate aberto, entre nós os dois, e com a turma.

Quando tomaram conhecimento do formato que a cadeira iria ter, muitos alunos correram a inscrever-se. E, no primeiro dia de aulas, lá estávamos os dois em pé, sobre o estrado, voltados para a turma, eu à direita dele.

-Your proper place, Pedro, is on my right - disse ele em voz alta, a suscitar o riso geral.

A idade média dos estudantes era de 30 a 35 anos, todos já licenciados em alguma área e muitos com experiência profissional em vários domínios. Alguns, já tinham sido meus alunos noutras cadeiras. Os mesmos que tinham andado a dizer bem de mim ao Deão, contemplavam-me agora com um sorriso nos lábios, antecipando o espectáculo.

Ao final de três ou quatro sessões, alguns estudantes já se dirigiam a mim ou ao Deão - mais a ele do que a mim - perguntando se podiam convidar amigos para assistir às sessões. Houve alguns que até levaram as mulheres e os maridos. Ao final da sexta ou sétima sessão, a sala estava apinhada e havia assistentes, em bicos de pés, do lado exterior da porta. Na sessão seguinte, mudámos para um anfiteatro.

Até que, ao cabo das doze semanas, a cadeira chegou ao fim. No final dessa sessão, a assistência levantou-se e presenteou-nos com uma imensa salva de palmas.

O ponto que eu gostaria de salientar não é o das palmas - porque palmas eu já tinha recebido em várias ocasiões anteriores. O ponto que eu gostaria de salientar foram as lições que eu retirei dessa experiência e que ficaram para sempre.

Primeira, no mundo das ideias e na sua discussão, não existem hierarquias nem distinções de qualquer espécie.

Segunda, e a mais importante de todas. Em muitas ocasiões do debate, as posições que exprimimos perante a audiência eram posições radicalmente opostas e atá antagónicas. Estavam ali um professor catedrático (full professor) e um mero assistente, o primeiro com idade e experiência para ser pai do segundo. Estavam ali o patrão da Faculdade e um mero empregado. Estavam ali também um cidadão canadiano altamente considerado e um jovem estrangeiro vindo de um país que possuía a reputação de ser um país situado entre o terceiro mundo e o mundo desenvolvido - e este a emitir opiniões categóricas, e quase sempre críticas, sobre vários aspectos da política económica do Canadá, um dos países mais desenvolvidos do mundo, incluindo o Rendimento Mínimo Garantido.

Nos momentos e nas situações em que o debate se tornou mais intenso e antagónico durante aquelas doze semanas, ele poderia ter utilizado qualquer destas diferenças, e o poder que possuía sobre mim, para desvalorizar os meus argumentos ou até diminuir a minha pessoa, acabando comigo, e saindo airosamente da situação - e eu teria aguentado e calado.

Nunca o fez. Tratou-me sempre como um igual. Ele ensinou-me que o debate intelectual puro e desinteressado, onde só os argumentos contam - e mais nada vale - não é uma miragem, e eu passei a acreditar nisso para sempre.

Nos anos seguintes, acabaríamos por realizar vários trabalhos em conjunto, até ao meu regresso a Portugal. No ano passado, quando o visitei em Ottawa, ele disse-me que nos sete anos que serviu como Deão da Faculdade, a maior perda que tinha tido no corpo docente, fui eu. Eu retribuí-lhe, confidenciando-lhe as lições que ele me ensinou para a vida.

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