18 agosto 2007

Vítor Bento

Tenho acompanhado com interesse a sua série de posts sobre os diferentes comportamentos sociais e políticos induzidos por diferentes culturas religiosas, nomeadamente, a protestante e a católica. Mesmo não estando de acordo com todos os seus desenvolvimentos, acho-os muito interessantes.

O que lhe queria transmitir é que acho que começa a sua análise das origens comportamentais (ou de moralidades) "tarde de mais". Isto é, a divisão entre católicos e protestantes, não é uma divisão "fundadora", mas é, ela própria, o resultado de uma outra "divisão fundadora" que lhe é anterior e que, para mim, é muito mais importante. Trata-se - e aqui tomo uma tese que é de Michael Oakeshott - da divisão criada com o fim das relações feudais e com a forma como os "libertos" dessas relações lidaram com a individualidade adquirida: uns assumiram-na por inteiro, com a consequente soberania moral, dando lugar a uma moralidade da individualidade; outros, recearam-na e procuraram refúgio no colectivo, criando uma moralidade do colectivismo. A primeira privilegia a liberdade, a segunda a segurança, entre vários outros factores distintivos.

Esta tese é apresentada por Oakeshott num livro que, na tradução portuguesa, tem a seguinte identificação: Oakeshott, Michael (1993), "Moralidade e Política na Europa Moderna", Século XXI (Lisboa), 1995, trad. António Machado.

Eu utilizei essa ideia de Oakeshott na minha tese de Mestrado em Filosofia Política e de que, para facilitar o enquadramento do que digo, transcrevo a parte relevante (a tese está publicada pela Almedina, com o título "Os Estados Nacionais e a Economia Global" e a transcrição seguinte está nas págs. 56 e 57):

"Michael Oakeshott sem explicitar a ligação, apresenta uma interpretação interessante que se ajusta à evolução, e às suas consequências políticas, dos dois ramos desenvolvidos a partir dos entendimentos diversos que Locke e Rousseau tiveram do contrato social [1]. Entendimentos de certo modo refelectidos no curso diverso das Revoluções Americana e Francesa, na evolução das modernas ideias políticas e claramente perceptíveis nos confrontos políticos que dominaram o século XX.

Segundo Oakeshott, na sequência da desintegração da ordem político-social da Idade Média, os homens libertaram-se das subordinações feudais, ou comunitárias, características da ordem medieval e foram confrontados com os desafios da sua individualidade. Da resposta a esses desafios emergiram duas moralidades em confronto. De um lado, a "moralidade da individualidade", sustentada pelos homens que se procuram afirmar como indivíduos, reclamando soberania moral sobre si mesmos e comprometendo-se a viver uma vida governada pelas suas próprias escolhas, assumindo os correspondentes riscos. Do outro lado, a "moralidade do colectivismo", sustentada pelos homens que não conseguiram tornar-se indivíduos, sem vontade ou capacidade de realizar escolhas, e de assumir os riscos da individualidade, e que reagiram a essa incapacidade com inveja, ciúmes e ressentimento, procurando no "colectivo protector", a imposição a todos da sua própria incapaciadade. "O homem frustrado pelo falhanço em viver de acordo com os apelos do seu tempo tornou-se um homem determinado a fazer o mundo à sua imagem ... Tornou-se o "anti-indivíduo" militante" [2]-

A primeira moralidade, contemplando uma íntima conexão entre o usufruto da individualidade e a instituição da propriedade privada, permitiu encarar politicamente as sociedades humanas, não como comunidades dominadoras, mas como associações de indivíduos que escolhem , eles próprios, o que fazer e em que acreditar. Os governos devem, nesta acepção, limitar-se essencialmente a assegurar as condições necessárias à prossecução dos empreendimentos individuais e a prevenir a ocorrência de choques, sempre possíveis, entre os membros da sociedade.

Por sua vez, o adepto da moralidade do colectivismo procurou que o governo o protegesse da necessidade de ser um indivíduo, instituindo uma moralidade apropriada ao seu estado e condição. Esta moralidade anti-individualista tendeu sempre a considerar a propriedade privada como um mal, pois que, sendo radicalmente igualitária, vê com desconfiança qualquer tipo de privacidade. A privacidade deverá, como tal, ser abolida, permitindo que, dentro de uma "colectividade", todos sejam unidades iguais e anónimas. Os governos deverão proporcionar, pois, assistência, protecção e liderança a estes homens que, por incapacidade ou falta de disposição, esperam que lhes digam o que fazer e em que acreditar. A realização destes desejos requer governos que sejam, não só soberanos, mas também poderosos. É assim que, segundo Oakeshott, "algumas das mais notáveis criações políticas da Europa moderna foram concebidas para fazer escolhas em vez daqueles que eram incapazes, ou não estavam dispostos, de as fazer eles próprios: o 'príncipe perfeito' do século XVI, o déspota 'iluminado' do século XVIII, o 'ditador' do nosso tempo, para mencionar apenas três exemplos entre muitos" [3].
Complementando a análise das duas vertentes teóricas do contrato social, desenvolvidas nos séculos XVI e XVII num contexto de completa secularização da política, a interpretação proposta por Oakeshott ajuda, sem dúvida, a perceber melhor a emergência dos dois pólos cuja tensão marcou a evolução, não só das modernas ideias, mas da própria acção política, ao longo dos últimos três séculos: o pólo libertário, privilegiador da liberdade e baseado no reconhecimento da individualidade, da propriedade privada e da livre iniciativa; e o pólo colectivista, privilegiador da igualdade e baseado no papel dominador do estado e na submissão dos interesses e actividades individuais ao interesse "colectivo" representado pelo estado".

Vítor Bento

[1] Cf. "Moralidade e Governo na Europa Moderna", in Oakeshott (1993), p. 35-51 e "The masses in representative democracy", in Oakeshott (1962), p. 363-383.
[2] Oakeshott (1993), p. 47.
[3] ibid.

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