08 agosto 2007

a revelação


Num post anterior, eu referi a minha participação durante seis meses no Blasfémias como uma das mais interessantes experiências da minha vida. Gostaria hoje de referir outro aspecto dessa experiência.

O Blasfémias apresenta-se como um blogue liberal e ali concorrem toda a sorte de comentadores que se identificam como liberais. Por isso, eu esperava ir ali encontrar pessoas geralmente familiarizadas com o pensamento, os autores e a tradição liberal. Puro engano. Ao cabo de duas semanas, eu tinha já concluído que a esmagadora maioria dos comentadores que se apresentavam como liberais nunca tinham lido um livro sequer sobre o liberalismo. Eles não faziam a mais remota ideia acerca do que era o pensamento liberal moderno, menos ainda o clássico. A surpresa maior ocorreu, porém, quando, semanas mais tarde, eu concluí que, sobre alguns dos bloggers, não se podia dizer muito mais.

Muitos destes comentadores e bloggers - seguramente, a maioria - apresentavam-se como agnósticos ou ateus, invariavelmente críticos da Igreja Católica, por vezes admiradores da cultura anglo-saxónica de inspiração predominantemente protestante. Alguns deles, na defesa do liberalismo que eles tinham tirado do seu próprio chapéu, tornavam-se frequentemente violentos e intolerantes contra toda a opinião contrária, ainda que fundada na evidência - como por exemplo a de que na origem do liberalismo moderno tinham estado os padres católicos da Escola de Salamanca.

Eu fiquei então fascinado por descobrir as origens deste quadro intelectual tão curioso. Havia ali fé religiosa e da mais pura - aquela que frequentemente conduz à violência. E o Vítor Bento, num artigo sobre o assunto que publicou no Diário Económico, sob o título A religião laica (cito de memória), forneceu-me algumas pistas. Eu penso agora ter resolvido este puzzle.

Descartes criou uma espécie de religião a que se poderia chamar protestantismo laico - e uma religião que cai facilmente no ateísmo. Os protestantes, ao tirarem a Igreja do caminho na sua relação com Deus, tiveram em seguida de resolver a questão de saber como é que cada homem podia chegar a Deus. Calvino deu a resposta: "(...) é uma experiência que pode apenas ser o produto de uma revelação dos céus".

Para chegar à verdade, Descartes procedeu de igual modo, tirando do caminho a tradição e a experiência. Punha-se agora a questão de saber como é que cada homem podia chegar à verdade. Ele respondeu assim: "Depois de observar que não existe nada no Eu penso, logo existo que me assegure que eu estou a falar a verdade, excepto que eu posso ver muito claramente que para pensar é necessário existir, eu concluí que podia tomar como regra geral a de que as coisas que nós concebemos muito claramente e muito distintamente são todas verdadeiras". É a revelação.

Portanto, segundo Descartes, sempre que eu pretenda emitir uma opinião sobre qualquer assunto, a experiência ou aquilo que os outros disseram no passado sobre esse assunto não interessam para nada. Tudo o que eu tenho a fazer é formular uma ideia sobre o assunto - tirar um coelho da cartola - e se essa ideia for muito clara e muito distinta ao meu espírito, então eu posso estar certo de que ela é verdadeira.

Esta religião laica possui um Deus e é Ele que é suposto assegurar a fiabilidade da razão humana para chegar à verdade. Descartes procurou demonstrar a sua existência através de três argumentos diferentes, mas em nenhum deles foi convincente. É por isso que esta religião cai facilmente no ateísmo.

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