29 agosto 2007

pela porta dentro

Eu tenho em alta consideração muitos dos escritos de Hayek em economia, na filosofia do direito e na história das ideias. Não tenho apreço pela sua filosofia política que, na sua maior parte, é pura ideologia, ou mera superstição, como ele gostava de dizer. Gostaria hoje de explicar porquê.

Hayek toma os moralistas escoceses, em especial Bernard de Mandeville e David Hume, como ponto de partida. David Hume tinha negado a possibilidade do conhecimento humano, em particular as relações de causalidade. Na opinião de Hume, entre a decisão de um homem e as suas consequências não existe relação nenhuma - ou, se existe, é meramente por acaso. Daí a extensa literatura de Hayek sobre as limitações do conhecimento humano, e de que o ensaio "The Pretence of Knowledge" é talvez a principal.

Hayek divide a sociedade em duas esferas, a esfera pública e a esfera privada. Na primeira, prevalecem as relações de comando, na segunda as relações voluntárias. Mas se o conhecimento humano é limitado, as decisões tomadas na esfera pública - isto é, as decisões tomadas pelos políticos e pela administração pública - e que visam afectar toda a sociedade são decisões de efeitos necessariamente imprevisíveis e frequentemente opostos aos pretendidos.

Daí a tese do Estado Mínimo - a tese que consiste em minimizar a esfera das decisões que são tomadas na esfera pública por políticos e burocratas e maximizar a esfera privada da sociedade. Esta é esfera que está baseada nas relações voluntárias ou espontâneas estabelecidas entre as pessoas e portanto a sua maximização pressupõe a maximização da esfera de liberdade individual que é reconhecida aos homens. Assenta aqui o liberalismo de Hayek.

Hayek é agora chamado a provar que o complexo das relações voluntárias ou espontâneas estabelecidas entre as pessoas no domínio da economia, da família, da empresa, da acção política e social, etc., conduz a uma ordem social - a sua célebre ordem espontânea em que se traduz a sua Grande Sociedade -, e não a uma desordem.

Hayek nunca introduziu na sua teoria da sociedade - excepto num momento muito tardio, as vésperas da sua morte -, a religião e muito menos a ideia de Deus, nem isso era científico na sua época, nem agora. Porém, nunca tendo existido na historia da humanidade - menos ainda prosperado - alguma sociedade sem a ideia de Deus, seria, pelo menos legítimo perguntar sobre que tipo de sociedade Hayek passou a maior parte da sua vida a teorizar - e a resposta não podia ser senão a de uma sociedade fantasiosa ou, para usar uma das suas expressões favoritas, a de uma superstição.

Na realidade, o que é que impedia que no processo social espontâneo, os pais abandonassem generalizadamente os filhos (como Hayek fez aos seus e à mãe deles), as partes não cumprissem generalizadamente os contratos, os políticos e os burocratas usassem o dinheiro público em seu próprio benefício, os juizes não trabalhassem, as mulheres traíssem generalizadamente os maridos, os polícias se tornassem ladrões, os devedores nunca pagassem aos credores - o que é que impedia, em suma, que o processo social espontâneo resultasse, não numa ordem social, mas numa desordem?

A resposta, dizia Hayek, é que o processo social espontâneo (a que ele abusivamente chamava ordem espontanea, sem nunca ter provado que o resultado desse processo seria uma ordem, e não uma desordem) tinha de ser enquadrado por regras de justa conduta. Estas regras de justa conduta (v.g., honestidade, boa-fé nos negócios diários, cumprimento da palavra dada, etc.) eram elas próprias o resultado de um processo espontâneo de evolução e selecção ao longo da história da nossa civilização e estavam contidas na tradição, na moral e no direito.

Esta resposta, porém, apenas sugeria mais uma pergunta: porque é que a nossa civilização, através da tradição, da moral e do direito seleccionou essa normas de justa conduta que conduziram ao seu progresso e prosperidade, e não outras, por exemplo, regras de injusta conduta que tivessem conduzido ao seu declínio e extinção?

Foi somente no último escrito publicado ainda durante a sua vida, e não obstante várias pressões para que não o publicasse, no último capítulo do seu último livro The Fatal Conceit: The Errors of Socialism (1989), sob o título "Religion and the guardians of tradition", que Hayek, depois de reiterar o seu conhecido agnosticismo, enfatizou a importância da religião em suportar, encorajar e manter vivas as regras de boa conduta que tornaram possível à civilização ocidental - cristã, diria eu - sobreviver e prosperar, como nenhuma outra conseguiu na história da humanidade.

Hayek (1899-1992) passou a maior parte da sua longa vida convencido de que era possível construir uma sociedade sem a ideia de Deus. Enganou-se. A ideia de Deus entrou-lhe pela porta dentro pouco anos antes de morrer. Tarde de mais, porém, para que tivesse tempo de refazer toda a sua filosofia política.
Embora agnóstico, Hayek considerava que a religião católica era a preferível porque "continha os artigos da fé" e via no protestantismo uma ameaça ao sentimento religioso. Por sugestão do seu amigo Erik von Kuehnelt-Leddihn aceitou receber a benção da Igreja Católica antes de morrer. O seu funeral, realizado em Viena de Austria, a sua cidade natal, em 4 de Abril de 1992, foi presidido pelo padre católico, e seu amigo, Johannes Schasching, que proferiu a homilia.

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