11 agosto 2007

heréticos

A atitude anti-cartesiana é muito própria dos liberais. O problema é essencialmente epistemológico, e quer Popper, quer Hayek (mas, sobretudo o primeiro) trataram competentemente do assunto. A exaltação da razão, na dogmática cartesiana da vericitas naturae (a verdade evidente à omnipotente razão humana), diminuiu curiosamente o indivíduo em vez de o exaltar. Como Pedro Arroja aqui tem vindo a referir, conduziu a um certo abandono da espiritualidade humana e à elevação da razão, enquanto instrumento meramente lógico e intelectual, à condição de chave do universo. Nalguns momentos, como nos mais patéticos (e trágicos) da Revolução Francesa, houve até quem a quisesse transformar em divindade. Efectivamente, o racionalismo exacerbado que se apropriou de uma certa mentalidade muito afrancesada, foi um dos pilares do mundo moderno ocidental, do pensamento moderno, da filosofia moderna, de que, muito justamente, goste-se ou não, René Descartes é considerado o fundador. O liberalismo clássico não se revê em nada disto, como é por demais sabido e tem sido fundamentadamente tratado neste e noutros blogues liberais. Apesar de, aqui e ali, sofrer da sua influência, como praticamente todos os movimentos culturais e sociais (a própria Igreja Católica) que se sucederam a René Descartes.

Convém, contudo, não menosprezar a força das ideias, menos ainda os factos que levaram à necessidade da sua criação e que podem explicar a sua fácil expansão. Como todos sabemos, é quase sempre a procura que gera a oferta. Atrever-me-ia, por isso, a dizer, que o pensamento de Descartes era inevitável naquela época, e que a sua bem sucedida progressão no mundo ocidental corresponde a uma profunda e muito antiga tradição cultural e espiritual. Desde logo, a reacção inevitável ao peso que a Igreja de Roma tinha na vida desse tempo. Aceitando, obviamente, que essa importância foi consequência do mérito da própria instituição, que soube sobreviver à queda do mundo antigo e transformar-se no único veículo de comunicação (sensu lato) dos povos europeus (a quem costuma pôr isto em causa, costumo sempre recomendar um dos primeiros contos do Decameron, de Boccaccio, escrito no século XIV, sobre um judeu anticlerical que vai a Roma conhecer o «antro do vício» e volta convertido…), é indiscutível que a Igreja dos séculos XVI/XVII não podia manter a posição política, cultural e civilizacional monopolista que tivera desde praticamente a queda de Roma, em 476. Do mesmo modo que a ânsia da espiritualidade, e da própria religiosidade, são naturais no género humano, a exaltação do ego, do individualismo e da rebeldia são-no também. Nessa medida, quer o cartesianismo, quer os demais movimentos religiosos e, até, políticos deste tempo não são mais do que atitudes de reacção à Igreja Católica e a séculos de teocentrismo. Não podem, em conclusão, conceber-se sem a existência dela e acabam por ser seus filhos. Portanto, se o cartesianismo foi responsável por algumas tragédias do mundo, não tenho dúvida de que a Igreja foi em boa medida responsável pelo cartesianismo.

Todavia, subsiste aqui uma questão interessante, que tem sido tratada neste e noutros blogues, sobre a relação entre razão e espiritualidade, ou entre razão e religiosidade numa dimensão mais estrita. Como Arroja referiu, Descartes era, ele mesmo, um homem religioso e temente a Deus. Só que, aplicando o seu racionalismo à essência divina, entendeu que era por ela que se chegaria a Deus e não ao contrário. Nesta atitude reside a essência da heresia, segundo todas as religiões reveladas, isto é, as que assentam na revelação de Deus aos homens por via de um livro sagrado (Bíblia, Tora, Corão). Nessa perspectiva, só Deus se pode transmitir aos homens e é através dos instrumentos e das instituições que criou que Ele o faz. Os homens podem procurá-Lo, mas não poderão arrogar-se em conhecê-lo, ou em saber como chegar-Lhe. Todos os profetas, os homens de Deus e os crentes são tocados pela graça divina. Não é o homem quem toca a face de Deus.

Evidentemente que na atitude cartesiana perante Deus se encontrava, fundamentalmente, uma atitude de reacção à Igreja. Sobretudo, de reacção à Igreja enquanto detentora dos mistérios que podem conduzir a Deus. René Descartes estava, assim, a ser mais um veículo de uma tradição herética ancestral, que sempre existiu e existirá, e que é profundamente religiosa, cristã, quase sempre, do que um frio racionalista que menosprezava Deus. A gnose é, talvez, a doutrina que mais e melhor representa essa tradição ancestral, que hoje, e desde há muito, se encontra em quase todos os movimentos espiritualistas e esotéricos. Ao longo da história existiram inúmeros exemplos que podem ser dados, sendo que os Templários, os Cátaros e a Franco-Maçonaria são os mais conhecidos. As relações com a Igreja, inicialmente a Católica, mais tarde com quase todas as outras, não foram, não são, as melhores. Nem facilmente poderiam ser, porque os motivos que as dividem, ao contrário do que habitualmente se supõe, não se cingem a disputas por poderes terrenos ou influências políticas. É bem mais do que isso: de certo modo, utilizando linguagem económica, competem pelo mesmo produto – o Sagrado -, e não estão dispostos, uns e outros, a abdicarem da sua «verdade»: para uns revelada, para outros a descobrir. Essa é, no fim de contas, a natureza e a essência da heresia. De todas as heresias.

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