(Em resposta a este «post» do Carlos, bi-publicado no Blasfémias)
Não são apenas as religiões que se erguem a partir da fé. O liberalismo, enquanto filosofia política que acredita na superioridade moral do mercado e na liberdade individual, não deixa também de ter uma forte carga de convicções. A sua demonstração é muito mais intuitiva e empática do que propriamente racional e histórica. Bastaria, aliás, pedir a qualquer liberal que indicasse um exemplo histórico de um modelo de aplicação das ideias que defende, para que as dificuldades de racionalização começassem a surgir de imediato…
São essencialmente duas as convicções comuns ao pensamento liberal: a crença na racionalidade individual, que permitirá aos indivíduos fazerem as melhores escolhas, isto é, aquelas que lhes são mais convenientes para si e, consequentemente, para os outros; e a crença no livre-arbítrio enquanto espaço irredutível da liberdade individual, que concede aos homens a oportunidade de distinguirem entre o certo e o errado, o justo e o injusto, o bem e o mal.
O primeiro fundamento – a razão – é uma contribuição da filosofia antropocêntrica, que, note-se, não se reduz às Luzes, como frequentemente se supõe. Aliás, a razão, quando exaltada como as Luzes o fizeram, pode conduzir a um modelo de «liberalismo» iluminista e construtivista que, em bom rigor, não é liberalismo, mas despotismo. Esclarecido, como o pretendia Frederico II, ou não, como Robespierre preferiu. Deve ser, por isso, conformado por uma epistemologia de sensatez, que a par de aceitar a razão humana como a faculdade que nos permite conhecer e progredir, deve também reconhecer os seus naturais e imensos limites, próprios, de resto, da condição de quem a usa: a condição humana.
O segundo fundamento – o livre-arbítrio – tem as suas raízes na tradição cristã, mais propriamente no Catolicismo. Desde sempre os Doutores da Igreja debateram o livre-arbítrio, consideraram-no como atributo imanente à pessoa humana, e definiram-no como sinónimo de liberdade até mesmo perante Deus. S. Agostinho e S. Tomás identificam-no com a consciência moral individual, e com o uso inteiramente incondicionado que qualquer homem dela pode fazer nas suas escolhas. Esta liberdade transcendental – porque se manifesta, in extremis, perante Deus na possibilidade de não o aceitar e de desobedecer à sua lei moral -, é, de facto, eminentemente católica, já que nasceu no cristianismo, mas não deixou vestígios, bem pelo contrário, no determinismo protestante. Do ponto de vista católico, o exercício que mais interessa do livre-arbítrio é, naturalmente, o da escolha moral, de modo a elevar o homem até Deus. Mas é da pregação da liberdade individual plena que se trata: se o homem é livre de escolher ou afastar Deus da sua vida, sê-lo-á seguramente também nas relações com os seus semelhantes. De resto, muita da simbólica do cristianismo e do catolicismo gira em torno da liberdade individual, do livre-arbítrio e da liberdade de escolha: desde a escolha primordial de Adão e Eva, que condenou os homens a afastarem-se de Deus, que está relatada no Livro do Génesis, até à queda de Satanás que nos conta o Apocalipse, é sempre da liberdade individual, da livre escolha fundada no livre-arbítrio, que se trata.
Embora alguns autores clássicos, como Locke, não lhe tenham atribuído importância por aí além, a verdade é que o liberalismo clássico recebeu o livre-arbítrio do cristianismo católico e incorporou-o como um dos pilares fundamentais da sua doutrina da liberdade: a liberdade individual que deve assistir a todos os homens de poderem escolher, de poderem errar, de poderem seleccionar o que mais lhes interessa, sem necessidade de intermediários. Do mesmo modo que, para o catolicismo, os homens são livres da influência de Deus nas suas opções e escolhas morais, também para os liberais os homens devem exercitar a sua liberdade de escolha do modo mais incondicionado que seja possível.
Razão e livre-arbítrio são, pois, os dois pilares estruturantes do pensamento liberal. As suas raízes serão certamente múltiplas, mas não poderá negar-se a influência da doutrina católica nessa formação. O que, depois, os homens e, por vezes, as suas instituições fazem em circunstâncias históricas concretas com as ideias e as doutrinas que defendem ou dizem defender, é uma outra questão, que frequentemente o meu amigo CAA confunde com o essencial. Eu sugeria-lhe, por conseguinte, que gastasse mais algum do seu tempo com a genealogia das ideias, em vez de se perder na petit histoire de algumas (importantes) instituições.
Não são apenas as religiões que se erguem a partir da fé. O liberalismo, enquanto filosofia política que acredita na superioridade moral do mercado e na liberdade individual, não deixa também de ter uma forte carga de convicções. A sua demonstração é muito mais intuitiva e empática do que propriamente racional e histórica. Bastaria, aliás, pedir a qualquer liberal que indicasse um exemplo histórico de um modelo de aplicação das ideias que defende, para que as dificuldades de racionalização começassem a surgir de imediato…
São essencialmente duas as convicções comuns ao pensamento liberal: a crença na racionalidade individual, que permitirá aos indivíduos fazerem as melhores escolhas, isto é, aquelas que lhes são mais convenientes para si e, consequentemente, para os outros; e a crença no livre-arbítrio enquanto espaço irredutível da liberdade individual, que concede aos homens a oportunidade de distinguirem entre o certo e o errado, o justo e o injusto, o bem e o mal.
O primeiro fundamento – a razão – é uma contribuição da filosofia antropocêntrica, que, note-se, não se reduz às Luzes, como frequentemente se supõe. Aliás, a razão, quando exaltada como as Luzes o fizeram, pode conduzir a um modelo de «liberalismo» iluminista e construtivista que, em bom rigor, não é liberalismo, mas despotismo. Esclarecido, como o pretendia Frederico II, ou não, como Robespierre preferiu. Deve ser, por isso, conformado por uma epistemologia de sensatez, que a par de aceitar a razão humana como a faculdade que nos permite conhecer e progredir, deve também reconhecer os seus naturais e imensos limites, próprios, de resto, da condição de quem a usa: a condição humana.
O segundo fundamento – o livre-arbítrio – tem as suas raízes na tradição cristã, mais propriamente no Catolicismo. Desde sempre os Doutores da Igreja debateram o livre-arbítrio, consideraram-no como atributo imanente à pessoa humana, e definiram-no como sinónimo de liberdade até mesmo perante Deus. S. Agostinho e S. Tomás identificam-no com a consciência moral individual, e com o uso inteiramente incondicionado que qualquer homem dela pode fazer nas suas escolhas. Esta liberdade transcendental – porque se manifesta, in extremis, perante Deus na possibilidade de não o aceitar e de desobedecer à sua lei moral -, é, de facto, eminentemente católica, já que nasceu no cristianismo, mas não deixou vestígios, bem pelo contrário, no determinismo protestante. Do ponto de vista católico, o exercício que mais interessa do livre-arbítrio é, naturalmente, o da escolha moral, de modo a elevar o homem até Deus. Mas é da pregação da liberdade individual plena que se trata: se o homem é livre de escolher ou afastar Deus da sua vida, sê-lo-á seguramente também nas relações com os seus semelhantes. De resto, muita da simbólica do cristianismo e do catolicismo gira em torno da liberdade individual, do livre-arbítrio e da liberdade de escolha: desde a escolha primordial de Adão e Eva, que condenou os homens a afastarem-se de Deus, que está relatada no Livro do Génesis, até à queda de Satanás que nos conta o Apocalipse, é sempre da liberdade individual, da livre escolha fundada no livre-arbítrio, que se trata.
Embora alguns autores clássicos, como Locke, não lhe tenham atribuído importância por aí além, a verdade é que o liberalismo clássico recebeu o livre-arbítrio do cristianismo católico e incorporou-o como um dos pilares fundamentais da sua doutrina da liberdade: a liberdade individual que deve assistir a todos os homens de poderem escolher, de poderem errar, de poderem seleccionar o que mais lhes interessa, sem necessidade de intermediários. Do mesmo modo que, para o catolicismo, os homens são livres da influência de Deus nas suas opções e escolhas morais, também para os liberais os homens devem exercitar a sua liberdade de escolha do modo mais incondicionado que seja possível.
Razão e livre-arbítrio são, pois, os dois pilares estruturantes do pensamento liberal. As suas raízes serão certamente múltiplas, mas não poderá negar-se a influência da doutrina católica nessa formação. O que, depois, os homens e, por vezes, as suas instituições fazem em circunstâncias históricas concretas com as ideias e as doutrinas que defendem ou dizem defender, é uma outra questão, que frequentemente o meu amigo CAA confunde com o essencial. Eu sugeria-lhe, por conseguinte, que gastasse mais algum do seu tempo com a genealogia das ideias, em vez de se perder na petit histoire de algumas (importantes) instituições.
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