23 agosto 2007

descartes ou hayek?



Quando Deus ditou a Moisés o Decálogo no Monte Sinai para que ele as levasse ao seu povo, não se atreveu a criar novas regras de conduta que fossem desconhecidas, antes se ficou por enunciar velhos princípios de vida comuns à maior parte dos homens daquele tempo.

Na verdade, com excepção dos dois primeiros mandamentos («1º Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas» e «2º Não invocar o Seu santo nome em vão»), legitimamente enunciados em defesa de direito próprio, todos os outros não constituíam novidade para o povo judeu. Mesmo esses dois eram tranquilamente acatados pelos crentes, inequivocamente maioritários, não obstante os desvios dos adoradores dos bezerros de ouro.

Todavia, e em abono do que atrás foi dito, a maioria das pessoas «guardava os domingos e dias de festa», «honrava pai e mãe», «não matava», «não pecava contra a castidade», «não furtava», «não levantava falsos testemunhos», nem «cobiçava a mulher do próximo ou coisas alheias». Bom, quanto a não cobiçar a mulher do próximo, tenho as minhas fundadas reservas, embora, em boa verdade, de todos os mandamentos divinos, esse terá sido certamente aquele em relação ao qual o Criador tem sido mais paciente. Em conclusão, a generalidade das normas de conduta contidas nos Mandamentos já eram observadas e acatadas pela generalidade das pessoas. Deus não terá, assim, feito mais do que transformar em lei escrita aquilo que, desde há muito, fazia parte da consciência moral e da ordem normativa e jurídica do Seu povo.

Ora, se nem Deus se arrogou na qualidade de legislador, criando, ex novo, normas de conduta social para aplicar aos Seus filhos, limitando-lhes a sua liberdade, porque hão-de alguns homens ter o atrevimento de se substituírem aos seus semelhantes pretendendo ditar-lhes as regras pelas quais eles deverão conduzir as suas vidas?

Este é o dilema em torno do qual gira toda a filosofia política – a de dar preferência ao poder público ou à liberdade privada – e é a seu respeito que o conceito hayekiano de «ordem espontânea» assume particular importância. Ele não é, de resto, senão outra forma de designar o conceito-chave do liberalismo clássico: a «mão invisível».

Na tradição política coexistem, deste modo, duas perspectivas incompatíveis da sociedade e do poder: a que entende serem as sociedades humanas fruto de uma construção artificial, resultante da inteligência dos seus governantes, e a que as vê como o produto da livre e espontânea cooperação entre os indivíduos. Entre estes dois extremos não há ponto de conciliação teórico, embora, na vida prática, essa tensão seja constante e obrigue frequentemente à coexistência.

A convicção do artificialismo da ordem social é a expressão política do construtivismo político racionalista. Funda-se na ideia de que alguns homens poderão verticalmente ordenar melhor a vida social, isto é, o comportamento individual de milhões de seres humanos em vista aos seus resultados particulares e comuns (evitemos a palavra «colectivos»), do que eles mesmos, ainda que tenham à sua disposição normas jurídicas e instituições judiciais e governativas que as façam respeitar, quando isso se tornar necessário. As origens desta filosofia são evidentemente o cartesianismo e o racionalismo francês: a convicção de que a razão humana tudo descobre, até mesmo as regras que presidem aos destinos dos homens. A sua expressão histórica maior foi o Despotismo Esclarecido, mas todos os despotismos e todos os intervencionismos inspiram-se nele. As sociedades contemporâneas continuam a prestar-lhe homenagem e a conceder aos governantes poderes quase sobrenaturais para que eles levem a felicidade para o reino dos homens. Com eloquentes resultados, como se vê…

Em contrapartida, o que o liberalismo sugere, e que Hayek repete e reformula, é apenas a ideia de que as sociedades humanas são excessivamente complexas para que possam ser verticalmente ordenadas, isto é, planificáveis. A «Grande Sociedade», como lhe chamou Hayek, não pode ser outra coisa senão o resultado da livre cooperação entre os homens e mulheres que a compõem, devidamente formatada por regras – regras sociais e regras jurídicas -, que eles mesmos vão estatuindo para melhor salvaguardarem as suas vidas, os seus direitos, os seus interesses. Não foi por acaso que a tese da «ordem espontânea» é tratada por Hayek na sua «opus magnum», que é a trilogia Law, Legislation and Liberty, por sinal um livro de filosofia do direito.

Porque, em última instância, é sempre de direito e do direito que falamos, quando referimos a ordenação social: de onde vêm, ou deverão vir, as normas jurídicas que nos condicionam a existência, limitam o comportamento, reprimem os nossos instintos, punem os actos que o senso comum considera ilícitos e indignos, estatuem as regras de cooperação entre os indivíduos, de criação e extinção de vínculos? Como se ordena melhor uma sociedade: pela decisão vertical de uma minoria esclarecida cujas decisões são juridicamente positivadas, ou horizontalmente, pela livre e espontânea cooperação entre iguais, cuja actividade é juridicamente ordenada por normas que resultam da tradição, do costume, das boas práticas individuais e sociais, que devem levar às «regras de justa conduta» que o legislador deverá transformar em direito positivo? Um estatista e um socialista, em suma, um cartesiano, não hesitarão em preferir a primeira; um liberal acreditará na segunda. Um crente a quem estas coisas suscitem interesse olhará para o exemplo que Deus lhe deu no Decálogo.

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