Aquilo que Mandeville nunca enfatizou na sua Fábula, e Hayek nem sequer reparou, foi a importância dessa figura central e quase mítica, sem a qual a colmeia, muito provavelmente, nunca teria sido construída, menos ainda de forma espontânea - a figura da abelha-mestra.
A analogia da Fábula permite, no entanto, chamar a atenção, para aquilo que constitui uma das maiores fraquezas da escola austríaca da economia - o seu aculturalismo -, o qual é exibido em toda a sua nudez em von Mises e só de uma forma muito precária é corrigido em Hayek. O primeiro pregaria a sua doutrina de modo idêntico em Nova Iorque, na selva latino-americana, ou no Afeganistão, irrespectivamente da cultura local. O segundo faria exactamente o mesmo, mas levaria atrás de si uma cultura explícita - a cultura anglo-saxónica e predominantemente protestante da Inglaterra e dos EUA onde viveu e produziu a maior parte da sua obra intelectual.
É por essa razão que eu reconheço ao pensamento de Hayek - sem lhe negar nunca o mérito de grande intelectual - uma relevância muito restrita num país de cultura profundamente católica como é Portugal - talvez, receio arriscar, o mais católico de todos os países católicos. E a Fábula de Mandeville serve para ilustrar o meu ponto.
Numa comunidade protestante, onde cada abelha tem uma relação directa com Deus é bem provável que a colmeia venha a ser construída, mesmo na ausência da abelha mestra, e a liberdade que é reconhecida a cada abelha conduza à ordem espontânea de Hayek que é, no fim de contas, a própria colmeia. A razão é que, na tradição protestante, esta liberdade é acompanhada de um sentimento de responsabilidade perante Deus, e portanto do dever de cada abelha contribuir para o bem comum.
A situação é diferente se esta comunidade fôr católica. Aí, cada uma das abelhas não tem nenhuma relação directa com Deus, mas sim com a abelha-mestra, a qual - ela sim - se relaciona com Deus. Todas as abelhas trabalham porque sabem que está lá alguém para as orientar e dirigir, para as avaliar e lhes retribuir o mérito e, em última instância, para lhes dar umas ferroadas quando não cumpram a sua função.
Nesta cultura católica, a ausência da abelha-mestra torna-se desastrosa. As abelhas vão parar de trabalhar, ficam sem saber o que fazer, envolvem-se em disputas sobre os seus méritos relativos, inventam razões para não cooperar, e muito dificilmente alguma vez a colmeia virá a ser construída. O resultado agora não é uma ordem, é uma desordem. E ninguém se sente responsável por ela precisamente porque não existe ninguém - que seria a abelha-mestra - a quem prestar responsabilidades.
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