25 julho 2007

é uma besta!

A minha experiência de seis meses como blogger do Blasfémias foi uma das experiências mais interessantes da minha vida, e em muito mais do que um aspecto.

Desde o final dos anos 80 e durante os anos 90 eu tinha exercido através dos jornais, da rádio e da televisão uma presença intensa junto da opinião pública portuguesa - uma ingenuidade que foi fruto, em parte, da minha formação num país de tradição protestante. Nunca tive uma ideia razoavelmente precisa do efeito que produzi - se algum. A redacção do jornal, da rádio ou da televisão é uma barreira que se interpõe entre o comunicador e o público, e raramente permite àquele tomar verdadeira consciência das reacções que provoca.

As poucas reacções que, ao longo desse período, fui recebendo não eram, na maior parte das vezes, muito encorajadoras, e menos ainda agradáveis de ouvir. Comecei então a duvidar se a minha crença na opinião pública como veículo para mudar a sociedade, e que eu trazia da minha formação académica em país protestante, teria alguma validade em Portugal, um país de educação imensamente católica.

Desde há muitos anos interessado pelo tema da formação da opinião pública em democracia, eu vi no Blasfémias um microcosmo ideal de experimentação para conhecer o processo de formação da opinião pública portuguesa. Sendo um dos mais abertos e populares blogues do país, ali se juntava todos os dias uma certa opinião pública, que chegou a atingir cinco mil pessoas, para debater em directo os assuntos do dia e outros às vezes mais profundos. Havia gente de todas as idades, desde jovens a homens e mulheres maduros. Quase todos os participantes me pareciam possuír formação universitária, ou estar em vias de a concluír. Eu tinha aqui à minha mão e em directo uma amostra da opinião pública portuguesa - e de uma opinião pública educada.

A experiência foi fascinante a tal ponto que eu ainda hoje considero o Blasfémias o mais representativo de todos os blogues portugueses, e certamente o mais excitante. É um mérito pelo qual eu gostaria de cumprimentar os meus ex-colegas. Foi ali no Blasfémias que eu pude ver e participar em directo no debate público e aberto e assistir em todo o seu esplendor, e sem quaisquer peias, ao processo de formação da opinião pública num país católico.

No período em que lá estive, das centenas de questões que foram postas a debate, raramente - se é que alguma vez - vi emergir um consenso, por mais pequeno que fosse. Após a colocação de um post, a reacção de qualquer comentador consistia invariavelmente em procurar arruinar a tese do autor e, quando vários comentadores se juntavam, passavam então a arruinar as teses uns dos outros.

A balcanização era evidente: certos comentadores eram sempre a favor do governo, irrespectivamente da medida que tivesse sido anunciada, outros inavariavelmente contra; uns eram sempre contra a Igreja, mesmo nos dias em que ela dava esmola aos pobres, outros seguramente a favor; uns eram feministas convictos e detestavam todos aqueles que não o fossem, recebendo da parte destes, sem qualquer cortesia, toda a reciprocidade. E por aí adiante.

Em determinada altura, já não eram só os comentadores que se envolviam uns com os outros e se insultavam uns aos outros. Também houve bloggers que o fizeram. Na parte que me respeita, o ambiente começou a aquecer, ao ponto da zaragata, a partir do momento em que passei a falar da Igreja Católica. As reacções foram violentíssimas. Comentadores e bloggers declararam-se ateus, outros agnósticos, Deus não existia e eu, com a idade, tinha-me tornado um padreca. O clímax foi atingido quando falei dos judeus e aí, eu próprio, não resisti.

No meio destas discussões processadas dias a fio e, às vezes, entrando pela noite dentro com insultos, ameaças e várias deprecações, eu pensava em relação aos bloggers e comentadores que se diziam ateus, agnósticos ou meramente anti-católicos: "Eles são muito mais católicos do que aquilo que se imaginam". E das dezenas, talvez centenas, de comentadores regulares que eu vi desfilar no Blasfémias, só me ficaram cinco na memória - os únicos que, na minha opinião, tinham capacidade, conhecimento e autoridade para alimentar um verdadeiro debate.

Porém, até na despedida esta minha experiência de debate público em meio católico foi fascinante e, num aspecto, divertida. Desde o início da minha colaboração no Blasfémias e até ao fim, houve um comentador que me fez uma marcação cerrada: o amigodaonça (antes, sob o nick incomodus). Sempre que eu colocava um post, ele era dos primeiros comentadores a aparecer, invariavelmente com um insulto.

No dia 24 de Abril de madrugada eu coloquei no Blasfémias o meu post de despedida. No final desse dia, o meu filho B., que exerce a sua actividade profissional em Leiria, telefonou-me para a minha casa no Porto, com um certo desconsolo na voz:

-Então, saíste do Blasfémias?
-Saí - respondi.
-Bem ... eu também só lá ia para ver os comentários do amigodaonça: "O Arroja é uma besta!".

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