Este foi, muito provavelmente, o período mais negro e o mais empobrecedor da nossa história de quase nove séculos, a tal ponto que muitos portugueses ainda hoje, por conhecerem a história, ou por informações de família, têm uma reacção instintiva de rejeição quando ouvem falar de liberalismo. Na realidade, houve de tudo neste período que se estendeu por pouco mais de um século: perseguições, confiscações, revoltas, revoluções, ditaduras, assassinatos políticos, até um regicídio, guerras civis e, sobretudo, uma imensa pobreza, como não podia deixar de ser numa sociedade assim.
Em termos económicos, este foi o período em que Portugal se atrasou irremediavelmente face à Europa, a tal ponto que, em 1926, o nível de vida médio de um cidadão português - medido pelo PIB per capita - era apenas 35% do nível de vida médio de um cidadão da Europa Ocidental, pouco mais de um terço. E a desordem destruidora que se abateu sobre as instituições tradicionais da sociedade - como a Igreja e, especialmente, o Estado - foi tal que o regime que lhe sucedeu adoptou a designação sugestiva de O Estado Novo.
Naturalmente, durante o período do liberalismo português prevaleceu a concepção moderna de liberdade herdada da revolução francesa. Porém, as condições para que essa ideia triunfasse, e produzisse os efeitos devastadores que viria a produzir, já tinham sido estabelecidas antes, particularmente por acção do Marquês de Pombal.
Na reforma da educação que efectuou na universidade, mais ainda do que nos estudos menores, o Marquês retirou a liderança intelectual do país das mãos dos padres - especialmente, os jesuítas - e colocou lá os juristas. Extinguindo a universidade de Évora, o Marquês iria deixar a universidade de Coimbra como a única universidade existente no país. Por entre as suas quatro Faculdades, existia uma que, pela dimensão dos seus números e pela vocação dos seus bachareis e licenciados, estava destinada a emergir como a rainha na vida pública portuguesa - a Faculdade de Direito.
Durante mais de dois séculos, o predomínio dos juristas formados em Coimbra - e, mais tarde também em Lisboa - sobre a vida pública portuguesa, na política e nos mais altos postos da governação - como o de primeiro-ministro ou o de chefe-de-estado - vai ser avassalador e estende-se até aos nossos dias. Na realidade, só muito recentemente, homens formados noutras tradições de pensamento, que não a jurídica, começaram a ascender em Portugal aos mais altos cargos da governação.
Como mencionei num post anterior, a concepção classica de liberdade é demasiado elaborada para ser facilmente apreendida por um vulgar bacharel em Direito - sobretudo quando a tradição coimbrã era conhecida pela circunstância de o período que os jovens passavam na universidade ser um período mais dedicado ao gozo dos prazeres carnais e espirituais da vida do que à austeridade imposta pelo estudo das leis.
Pelo contrário, a concepção moderna de liberdade que vê a liberdade como o direito de cada um fazer aquilo que quer, apenas limitado pelo reconhecimento que confere aos outros de igual direito, era a concepção adequada para bachareis e licenciados, não apenas porque era de fácil apreensão por espíritos ainda jovens, não apenas porque lhes falava em direitos que era uma linguagem que eles reconheciam, mas também porque era a que mais se ajustava à realidade da única experiência relevante de vida que eles tinham tido até então, e que fora a experiência de vida na universidade - fazer aquilo que queriam.
Para juntar o útil ao agradável - e como argumentei em post anterior -, esta era também a concepção de liberdade que melhor se coadunava com os seus interesses corporativos, porque era uma concepção de liberdade que, inevitavelmente, conduzia aos conflitos na sociedade - conflitos que os juristas alimentavam na vida pública e através da política, para depois serem privadamente pagos para os resolver.
1 comentário:
Esta culpabilização dos juristas pelo mau liberalismo é ridícula.
Foram os burgueses, enquanto nova classe dominante, que adaptaram os ideais da Revolução Francesa nascidos do jacobinismo, a um Estado progressivamente pouco intervencionista, agravando as desigualdades sociais.
O mau liberalismo é o neoliberalismo, ou seja, são não os amantes da liberdade, mas da liberdade económica apenas. Quando o melhor da liberdade é precisamente a do indivíduo em si, independentemente das suas posses materiais.
Marquês de Pombal, enquanto iluminista, racionalista e absolutista, pugnava por uma ordem Estadual forte e intervencionista, que organizaria a nação de acordo com cânones lógicos. Não pode de formal alguma ser responsabilizado pelos fracassos que o liberalismo só deve à burguesia oligárquica.
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