Tendo sido educado, em parte, num país anglo-saxónico de tradição protestante, eu sempre acreditei no argumento clássico de John Stuart Mill acerca da liberdade de expressão e nas virtualidades do debate público para conduzir os destinos de uma democracia. Segundo o argumento de Mill, a liberdade de expressão é desejável porque mesmo aqueles que estão em erro permitem, confrontando o seu erro com a verdade, que a verdade saia reforçada do debate.
Hoje não estou nada convencido disso, certamente que não num país de tradição católica - como Portugal -, embora continue a considerar a argumentação de Mill pertinente para um país de tradição protestante.
Porém, antes de passar ao argumento, eu gostaria de explicar os motivos que me induziram a rever a minha opinião nesta matéria. O primeiro foi o recente debate público em Portugal sobre o aeroporto da Ota. O debate foi intenso, na televisão, nos jornais, na rádio, nos blogues. E o que resultou dele, uma opção decisiva pela Ota? Não. Uma opção decisiva por qualquer alternativa à Ota? Também não. Aquilo que resultou do debate público - onde todos davam opiniões convictas como se fossem especialistas em aeroportos e levantavam as mais inverosímeis suspeitas sobre os interesses envolvidos - foi o pior de todos os resultados possíveis: a paralisia de qualquer decisão e o adiamento da construção de um aeroporto complementar ou alternativo à Portela provavelmente por muitos anos.
O segundo motivo foi a minha recente reflexão sobre a figura do Papa. Possuindo uma liberdade que é absoluta - e, por isso, uma liberdade de expressão que é também absoluta -, afinal, o Papa está quase sempre calado e raramente se pronuncia sobre qualquer assunto - e certamente que nunca se pronuncia acerca daqueles que não sabe.
O movimento da reforma religiosa, contestando o poder de Roma, como que disseminou e dividiu nos países protestantes - cabendo uma pequena fracção a cada cidadão -, a imensa liberdade que antes todos reconheciam ao Papa. Esta divisão colocou a cada cidadão individualmente, e em escala microscópica, a questão que, aos seus olhos, antes se punha, em grande escala, ao Papa - para quê fazer o mal se possui a liberdade para fazer o bem?
Os cidadãos de um país protestante entram, por isso, num debate público com a obrigação de fazerem o bem - porque é nessa obrigação que se traduz a sua liberdade - e contribuem de forma construtiva para o debate, calando-se quando não sabem, ou sentem que nada têm para dizer, e só falando quando sentem que podem acrescentar alguma coisa de positivo ao debate. Num meio cultural assim, o argumento de Mill faz sentido. Todos andam à procura da verdade, todos procuram contribuir para se chegar a ela, o ruído e o erro são mínimos, e a probabilidade de se chegar à verdade - sob a forma de uma conclusão razoavelmente consensual - é elevada.
Nenhuma obrigação semelhante ocorre ao espírito da generalidade dos cidadãos de um país católico. Participar em consciencia num debate, sentir a obrigação de só participar quando tem alguma coisa para acrescentar, isso é uma obrigação apenas daqueles que já subiram tão alto a escada da liberdade que se encontram numa posição próxima da do Papa. Os outros não sentem nenhuma obrigação do género. Por isso, dizem aquilo que lhes vem à cabeça, e sem qualquer contenção, aproveitam a oportunidade para lançar suspeitas, emitem as opiniões mais irresponsaveis, pretensiosas ou ignorantes, e tudo isso é entendido como uma manifestação da sua liberdade de expressão.
Numa cultura assim, a probabilidade de o debate público ser produtivo e permitir chegar à verdade, no sentido definido acima, é mínima. E o principal benefício da liberdade de expressão nesta cultura torna-se a possibilidade que ela oferece a cada um de ficar voluntariamente calado quando não sabe , ou não tem nada de positivo para dizer ou contribuir.
Hoje não estou nada convencido disso, certamente que não num país de tradição católica - como Portugal -, embora continue a considerar a argumentação de Mill pertinente para um país de tradição protestante.
Porém, antes de passar ao argumento, eu gostaria de explicar os motivos que me induziram a rever a minha opinião nesta matéria. O primeiro foi o recente debate público em Portugal sobre o aeroporto da Ota. O debate foi intenso, na televisão, nos jornais, na rádio, nos blogues. E o que resultou dele, uma opção decisiva pela Ota? Não. Uma opção decisiva por qualquer alternativa à Ota? Também não. Aquilo que resultou do debate público - onde todos davam opiniões convictas como se fossem especialistas em aeroportos e levantavam as mais inverosímeis suspeitas sobre os interesses envolvidos - foi o pior de todos os resultados possíveis: a paralisia de qualquer decisão e o adiamento da construção de um aeroporto complementar ou alternativo à Portela provavelmente por muitos anos.
O segundo motivo foi a minha recente reflexão sobre a figura do Papa. Possuindo uma liberdade que é absoluta - e, por isso, uma liberdade de expressão que é também absoluta -, afinal, o Papa está quase sempre calado e raramente se pronuncia sobre qualquer assunto - e certamente que nunca se pronuncia acerca daqueles que não sabe.
O movimento da reforma religiosa, contestando o poder de Roma, como que disseminou e dividiu nos países protestantes - cabendo uma pequena fracção a cada cidadão -, a imensa liberdade que antes todos reconheciam ao Papa. Esta divisão colocou a cada cidadão individualmente, e em escala microscópica, a questão que, aos seus olhos, antes se punha, em grande escala, ao Papa - para quê fazer o mal se possui a liberdade para fazer o bem?
Os cidadãos de um país protestante entram, por isso, num debate público com a obrigação de fazerem o bem - porque é nessa obrigação que se traduz a sua liberdade - e contribuem de forma construtiva para o debate, calando-se quando não sabem, ou sentem que nada têm para dizer, e só falando quando sentem que podem acrescentar alguma coisa de positivo ao debate. Num meio cultural assim, o argumento de Mill faz sentido. Todos andam à procura da verdade, todos procuram contribuir para se chegar a ela, o ruído e o erro são mínimos, e a probabilidade de se chegar à verdade - sob a forma de uma conclusão razoavelmente consensual - é elevada.
Nenhuma obrigação semelhante ocorre ao espírito da generalidade dos cidadãos de um país católico. Participar em consciencia num debate, sentir a obrigação de só participar quando tem alguma coisa para acrescentar, isso é uma obrigação apenas daqueles que já subiram tão alto a escada da liberdade que se encontram numa posição próxima da do Papa. Os outros não sentem nenhuma obrigação do género. Por isso, dizem aquilo que lhes vem à cabeça, e sem qualquer contenção, aproveitam a oportunidade para lançar suspeitas, emitem as opiniões mais irresponsaveis, pretensiosas ou ignorantes, e tudo isso é entendido como uma manifestação da sua liberdade de expressão.
Numa cultura assim, a probabilidade de o debate público ser produtivo e permitir chegar à verdade, no sentido definido acima, é mínima. E o principal benefício da liberdade de expressão nesta cultura torna-se a possibilidade que ela oferece a cada um de ficar voluntariamente calado quando não sabe , ou não tem nada de positivo para dizer ou contribuir.
2 comentários:
É necessário, portanto, um vasto movimento social que arranque totalmente as raízes católicas da sociedade portuguesa de uma forma nunca vista.
(Pessoalmente, sou contra esse tipo de violência.)
Mas mesmo isso não nos garante sucesso. Será que poderíamos aproveitar o actual processo de secularização da sociedade, sem precedentes na História portuguesa, para tentar construir uma sociedade de cidadãos responsáveis?
"Possuindo uma liberdade que é absoluta - e, por isso, uma liberdade de expressão que é também absoluta -, afinal, o Papa está quase sempre calado e raramente se pronuncia sobre qualquer assunto - e certamente que nunca se pronuncia acerca daqueles que não sabe."
Eu sempre achei que o homem não se cala...
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