14 julho 2007

dois inimigos inconciliáveis


Não existe poder menos legítimo que o adquirido por meio de uma revolução. Ele nasce da violência social, é exercido pela irracionalidade da turba, frequentemente instrumentalizada por demagogos e oportunistas de ocasião, e afirma-se capaz de mudar o mundo por actos de vontade. Não pode, por isso, encontrar-se manifestação de maior anti-liberalismo do que a revolução.

A Revolução Francesa, iniciada com a tomada da Bastilha que hoje se comemora, é disso um exemplo excessivo. O seu resultado, como Burke muito bem resumiu, foi a «baixeza» e não a liberdade. Como também dela não surgiu nada de novo, ao invés do que frequentemente se pretende, a não ser a consagração do totalitarismo revolucionário fundado na peregrina ideia da soberania popular, segundo Jean-Jacques Rousseau.

De facto, o que efectivamente caracterizou o fim dos Antigos Regimes do Despotismo Esclarecido foi a criação de regimes constitucionais, as chamadas Monarquias Limitadas ou Constitucionais, onde se geraram os fundamentos contemporâneos do Estado de Direito. Ora, ao invés do que é comum dizer-se, o constitucionalismo limitador do poder soberano conheceu as suas primeiras experiências históricas em Inglaterra, após a Revolução Gloriosa (1688) o o seu «Bill of Rights» (1689), e nos Estados Unidos da América, após a independência, em 1776, e da proclamação da Constituição, em 1787.

O que os franceses fizeram foi coisa diferente: acabaram com uma monarquia caduca e esclerosada, onde, só por graça, se poderia dizer que o rei era despótico, e, depois de uma brevíssima tentativa fracassada de implantar um regime de monarquia constitucional, impuseram a tirania do Terror jacobino (1792-94), à qual se seguiram a oligarquia do Directório (1794-99), e o despotismo napoleónico (1799-1814). Apesar de, como se disse, o começo da Revolução ter ensaiado uma tentativa de monarquia constitucional, muito por influência da burguesia girondina, semelhante ao sistema inglês, a radicalização jacobina de Robespierre, Danton, Marat, entre outros, não o permitiu. O resultado traduziu-se em mais de 40.000 franceses guilhotinados no espaço de dois anos que o Terror durou, e a supressão das mais elementares liberdades, que ficaram por muito tempo arredadas do país. Sobre esse equívoco, Burke não deixa lugar a dúvidas: «Tenho ouvido os franceses dizerem algumas vezes que os últimos acontecimentos no seu país se inspiram no exemplo da Inglaterra. Peço permissão para afirmar que quase nada daquilo que é feito entre os senhores foi inspirado, nem em espírito, nem na prática, nos costumes ou nas opiniões gerais do povo inglês».

Há, também, que referir que a inspiração ideológica da Revolução em França, aquela que vincou profundamente o seu carácter, resultou do mesmo racionalismo cartesiano, que paradoxalmente servira simultaneamente de inspiração ao despotismo esclarecido e ao despotismo popular de Rousseau. Verdadeiramente, aceitando a premissa cartesiana da «vericitas naturae», segundo a qual nada está vedado ao conhecimento humano, que, por conseguinte, poderá moldar o futuro à sua vontade, facilmente encontramos fundamento teórico para o absolutismo político. O único elemento que varia entre o modelo do «Rei Sol» e o do «Comité de Salvação Pública» é, verdadeiramente, o número daqueles que exercem a tirania. Que não é assim tão diferenciado, como se poderia pensar. Isto nada tem a ver com a tradição liberal inglesa e escolástica, que era evolucionista, experimentalista e defensora da limitação do poder, fosse este exercido por um, por alguns ou por muitos.

Infelizmente, na Europa do Sul, a influência, dita liberal, que marcaria o século seguinte e, até, o próprio século XX, seria a francesa. O equívoco do liberalismo com o jacobinismo e o intervencionismo de Estado persiste até hoje em muitos países europeus, e chegou mesmo a atravessar o Atlântico, tendo-se instalado na América do Norte. Contudo, e definitivamente, eles não se confundem e, ao contrário do que é por aí confessado, o liberalismo e o espírito da Revolução Francesa não só não coincidem, como são mesmo inimigos inconciliáveis.

2 comentários:

Fernanda Valente disse...

Este blogue está um "must"!
Acho que estou tentada a voltar à faculdade para tirar História ou Sociologia...
Penso que a Revolução Francesa foi necessário acontecer. Os acontecimentos que se lhe seguiram, só mostram a impreparação e a imaturidade da sociedade na construção dos novos alicerces que serviriam de base aos regimes subsequentes. Um pouco como o que se passou entre nós, após os meados da década de 70.

zazie disse...

Está um must, está mas por boas razões

";O)