Numa série de posts anteriores, eu tenho vindo a chamar a atenção para as raizes judaicas do pensamento neo-liberal. O meu propósito não é denegrir esta corrente do pensamento moderno, e menos ainda os seus autores, pelos quais eu tenho consideração, mas salientar a enorme dificuldade que seria conciliar esta corrente de ideias com a tradição cultural portuguesa, que é profundamente católica.
Provavelmente, em nenhum outro aspecto a influência da cultura judaica é tão saliente no pensamento neoliberal como no seu individualismo metodológico. E quando este individualismo é levado ao extremo, como aconteceu com Ayn Rand, ele transforma-se no culto do egoísmo e na elevação do egoísmo à categoria de valor moral supremo, acompanhada de uma condenação radical do altruísmo. Na realidade, dir-se-ia que só uma autora de cultura judaica podia levar o argumento a este extremo, ao ponto de escrever um livro com o título de A Virtude do Egoísmo. Para a tradição cristã, pelo contrário, o egoísmo é visto como um pecado, enquanto o altruísmo - fazer bem aos outros - constitui uma das suas virtudes cardinais.
O primado do interesse-próprio, que é uma imagem de marca do pensamento neoliberal, conduz Ludwig von Mises a desprezar completamente o tema do altruísmo na sua opus magna (Human Action). E, numa das raras ocasiões em que a ele se refere é para apresentar o altruísmo como uma forma de prossecução do interesse-próprio (se A faz bem a B é porque, em primeiro lugar, A beneficia desse acto, ficando melhor do que ficaria se não tivesse feito bem a B).
Porém, é Ayn Rand que condena o altruísmo como um dos mais imorais e destrutivos valores da humanidade, ao mesmo tempo que exalta as virtudes do egoísmo: "Eu não sou primeiramente uma defensora do capitalismo (...), mas sim do egoísmo (...)", escreveu ela em 1971.
A omissão do altruísmo, enquanto valor importante numa sociedade livre, por parte de Mises, e a sua condenação radical por parte de Rand, ao mesmo tempo que são exaltados o interesse-próprio e o egoísmo, explica talvez parte do fascínio que estes autores sempre tenderam a exercer sobre os adolescentes e o espírito de culto que acabaram por criar (mais Rand do que Mises). Na realidade, é na adolescência, quando cada ser humano está em vias de afirmar a sua individualidade e se sente o centro do mundo, que ele é mais sensível aos apelos do egoísmo.
Porém, é depois do período egoísta da adolescência, quando cada homem ou mulher cria a sua própria família e tem os seus filhos, que ele ou ela se vai dar conta da importância do altruísmo na sociedade, ao ponto de se poder afirmar com razoavel segurança que, sem o valor do altruísmo, a humanidade há muito teria deixado de existir. A importância do altruísmo, especialmente na família - a instituição onde ele é praticado por excelência - viria mais tarde a ser reconhecida nos trabalhos de Gary Becker e outros.
Porém, é depois do período egoísta da adolescência, quando cada homem ou mulher cria a sua própria família e tem os seus filhos, que ele ou ela se vai dar conta da importância do altruísmo na sociedade, ao ponto de se poder afirmar com razoavel segurança que, sem o valor do altruísmo, a humanidade há muito teria deixado de existir. A importância do altruísmo, especialmente na família - a instituição onde ele é praticado por excelência - viria mais tarde a ser reconhecida nos trabalhos de Gary Becker e outros.
Mas como nem Mises alguma vez foi pai, nem Ayn Rand alguma vez foi mãe, talvez isso ajude a explicar, para além da sua cultura judaica, a sobrevalorização que um e outro fizeram do interesse-próprio e do egoísmo, em prejuízo do valor cristão por excelência que é o altruísmo.
8 comentários:
Caro amigo,
O altruísmo é um valor transversal ao Ser Humano, independentemente de qualquer fé, crença ou religião; ou se tem, e se é, ou não.
"As simple as that".
Concordo com tudo o que diz no post. Só não percebo a relevância de o pontilhar de vez em quando com a referência aos judeus.
O pontilhado é para ter comentários.
Concordo com o seu artigo.
Em relação ao comentário do anónimo cabe-me referir o seguinte: é verdade que não é preciso ter fé ou religião para se ser altruista, só que o facto de se ser cristão, diria verdadeiramente cristão ou religioso, implica que se tenha ou se procure cultivar essa qualidade.
Muito bom, caro Pedro.
Mas tenho uma questão que ache devia explorar melhor: onde é que funda o culto do egoísmo na cultura judaica? E, se ela é responsável pela formação dos seus intelectuais mais notáveis, como se explica que Becker tenha introduzido o «altruísmo» na sua análise económica da família e da sociedade?
O Gene Egoísta é o livro em que Richard Dawkins apresenta uma teoria evolucionária que procura explicar a evolução das espécies na perspectiva dos genes e não na do indivíduo ou da espécie. Segundo a teoria do gene egoísta, o gene é a unidade fundamental da evolução. Esta ideia põe cobro a algumas confusões que se criaram com o objectivo de explicar determinadas características físicas ou comportamentais dos seres vivos. Olhando-se para a evolução do ponto de vista do gene, é possível explicar mesmo fenómenos de selecção de grupo.
4 hero
Um egoísta também pode ser de esquerda, se estiver convencido que é por meio de princípios humanistas que a sociedade facilita a realização individual.
Caro Professor Pedro Arroja,
A discussão sobre Rand num âmbito liberal arrisca-se a não deixar de ser semântica.
Como sabe, ela distinguia três coisas: selfishness, egoism (ou rational egoism) e egotism. A primeira, por oposição a selflessness, viver apenas por e para os outros (ou Deus) sem qualquer interesse por si mesmo;
a segunda como valor moral sim (reconheço que é complicado e perigoso) mas goste-se ou não, dentro da “esfera de liberdade” de Berlin;
a terceira como um valor tão desprezível como selflessness.
Quanto ao altruísmo, não o “recomendava”como valor institucionalizado no sentido do slogan comunista (“to each according to his need, from each accordint to his ability”) ou católico (selflessness) como chave de acesso à eternidade. Não condenava, no entanto, o altruísmo que deriva do seu egoism. Por exemplo: eu estou disposto a sacrificar-me (a dar a vida até) pelo meu filho, mas não o faria pelos seus. Isto é altruísmo ou egoísmo? Do mesmo modo, se um meu semelhante se encontrar numa situação que me incomode ou preocupe sinto-me no dever de o ajudar e fá-lo-ei. Mas como o faço porque me incomoda e preocupa não estarei a ser egoísta (no sentido randiano)? Claro que sim.
cumprimentos
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