23 junho 2007

antes da eutanásia: ainda o aborto e a liberdade


por Pedro Arroja

O Rui pediu-me que escrevesse sobre a eutanásia na perspectiva do liberalismo. A eutanásia é uma decisão de terceiros de pôr termo a uma vida na fase final da vida humana. Senti necessidade de recuar primeiro, voltando ao outro extremo do espectro da vida humana e ao tema do aborto, que é uma decisão de terceiros de pôr termo a uma vida, mas agora na fase inicial da vida humana.

«A liberdade é a verdade da consciência, como Deus», escreveu Alexandre Herculano - na minha opinião o mais distinto liberal português da modernidade. Pela mesma altura, no Reino Unido, Lord Acton escrevia no mesmo sentido: «A noção católica, definindo liberdade, não como o poder de cada um fazer aquilo que quer, mas como o direito de cada um fazer aquilo que deve ser feito, impede que o interesse colectivo se sobreponha aos direitos individuais».

Mais recentemente, seguindo esta linha de argumentação num «post» que escrevi no Blasfémias, eu defini uma sociedade liberal como aquela em que todos cumprem as suas obrigações para com os outros. Na realidade, esta sociedade não necessita de coerção. Ela dispensa inteiramente as leis penais e certamente a maior parte das leis civis. Uma sociedade assim é a mais livre de todas as sociedades. Em particular, ela não necessita de leis nem sobre o aborto nem sobre a eutanásia.

Ela não necessita de leis sobre o aborto porque todas as mulheres grávidas cumprem as suas obrigações para com os seus filhos – ainda que eles se encontrem ainda no seu útero – que é a obrigação de lhes dar vida e os educar. Nesta sociedade, vão existir abortos – por exemplo, quando o nascimento do filho ponha em perigo a vida da mãe. Terá de ser a mãe, então, a decidir, em consciência, o que fazer, eventualmente assistida pela sua família e pelo seu médico. Qualquer que seja a sua decisão – abortar ou não abortar, pondo em risco a sua própria vida – ela toma-a livre de coerção e é uma mulher livre.

A lei que possuíamos sobre o aborto era, neste sentido, uma lei profundamente liberal. Proibindo o aborto, como princípio, ela apenas se limitava a confirmar e a dar cobertura ao princípio liberal segundo o qual seria de esperar que todas as mães cumprissem as suas obrigações para com os seus filhos, dando-lhes vida. E abrindo excepções, ela dava também cobertura àquelas mães que, em consciência, decidissem abortar porque o nascimento dos seus filhos punha em risco as suas próprias vidas.

Porém, a sociedade ocidental, ao longo das últimas décadas tem-se tornado cada vez menos liberal – e a sociedade portuguesa tem-no feito a um ritmo acelerado nos últimos dez anos. Muitas mulheres grávidas deixaram de cumprir a sua obrigação para com os seus filhos, que é a de lhes dar vida. E, por isso, foi necessário modificar a lei, passando de uma lei que era liberal para uma outra que é opressiva.

A legislação que progressivamente vai emergindo do resultado do referendo sobre o IVG realizado recentemente em Portugal é uma lei opressiva para todos os seres humanos que existem no ventre materno com menos de dez semanas de idade. Coloca todos sobre ameaça discricionária de morte, e alguns vão morrer sem que os autores da morte sejam punidos.

Curiosamente, os defensores do Sim no referendo foram aqueles que mais frequentemente reclamaram o título de liberais. Porém, a noção de liberdade que eles invocavam, era uma noção muito diferente daquela que possuíam Herculano e Lord Acton. A liberdade era agora o direito de cada um a fazer aquilo que quer (e, em particular, o direito da mulher a dispor do seu corpo) – e um direito só limitado por igual direito que é reconhecido aos outros.

Esta concepção de liberdade conduz à opressão (no caso do aborto, à opressão sobre todos os seres humanos com menos de dez semanas de gestação). Na realidade, quando a esfera de liberdade, assim definida, e pertencente a uma pessoa intersecta a esfera de liberdade pertencente a outra pessoa, o conflito emerge: qual das duas esferas de liberdade vai prevalecer?. A resposta é a do mais forte, conduzindo à opressão do mais fraco. Esta sociedade deixou de ser liberal – certamente que deixou de ser liberal para os mais fracos. E, ainda que, quando o conflito ameace resultar em violência, a lei seja chamada a intervir para o regular, a intervenção da lei só pode ser no sentido de restringir as esferas de liberdade de ambas as partes afim de prevenir o conflito - em qualquer caso tornando a sociedade menos liberal.

As novas leis do aborto que agora emergem do referendo não significam que a sociedade portuguesa se esteja a tornar mais liberal. Significam exactamente o contrário. Elas, na realidade, só se tornaram necessárias porque a sociedade se tornou menos liberal, como qualquer ser humano que consiga escapar à ameaça legal de morte que sobre si passou a pairar até às dez semanas provavelmente reconhecerá, e como certamente reconheceriam todos aqueles que não conseguiram escapar a tal ameaça – caso estivessem cá para pronunciar julgamento sobre o assunto.

7 comentários:

Anónimo disse...

"A eutanásia é uma decisão de terceiros de pôr termo a uma vida na fase final da vida humana."
Nem sempre, meu caro. O que fazer quando não é? Autorizar? Não autorizar?

João Gomes disse...

Caro Pedro Arroja,

Acho que mais depressa do que pensamos, pode surgir uma solucção para o problema da eutanásia.
Sugiro-lhe que leia isto:
http://aquelaopiniao.blogspot.com/2007/06/mar-dentro.html
Acho que poderá ajudar bastante à discussão.

JG

CN disse...

Aproveitei para ser mais genérico e comentei aqui:

Liberalismo e Moral, Direito Penal e Regulação Local

http://blog.causaliberal.net/2007_06_01_causaliberal_archive.html#7534370363382281712

Fernanda Valente disse...

Este artigo toca-nos na ferida e deixa-nos sem argumentação. Ao nos colocarmos na pele do embrião, chegamos à conclusão que é bastante defensável o direito à vida, e, portanto, condenável a IVG. Já no direito à morte, não se coloca esse problema, uma vez que eu só aceito a eutanásia se for a pedido do próprio, e não através de uma decisão de terceiros, inclusivé (e sobretudo) de familiares ou médicos.
Ainda na questão do direito à vida, uma perspectiva científica para o debate seria interessante, na medida em que não se sabe exactamente a partir de quando é que há vida, tal como nós a entendemos. Também, partindo do princípio que ao feto já lhe é reconhecido o direito à vida, faz sentido que outros direitos lhe sejam igualmente reconhecidos, como o de ser gerado num ambiente biologicamente saudável, isento dos efeitos das drogas, alcoól, tabaco.
Sou a favor da eutanásia nos termos expostos acima, mas contra a IVG, apesar de ter votado a favor. É que cada vez mais, certos valores que defendemos, começam a fazer parte do universo da utopia. Cada vez mais, nos distanciamos da sociedade ideal (liberal?) por força das circunstâncias, pela nossa própria sobrevivência. E é a essa atitude que se dá o nome de pragmatismo, que, ao contrário do que muitos pensam, não é um conceito novo de participação na sociedade, mas, antes uma forma recorrente de acautelarmos a nossa própria sobrevivência.

MP disse...

"A eutanásia é uma decisão de terceiros de pôr termo a uma vida na fase final da vida humana."

De facto, nem sempre é assim, ou, não tem que ser necessariamente uma decisão de terceiros. Existe um exemplo flagrante apresentado pelo filme espanhol "Mar Adentro":

http://www.theseainside.com/

Quanto à eutanásia, tenho uma opinião "muito pouco liberal". (!!)

ablogando disse...

Parabéns pelo texto, a que fiz agora mesmo referência no meu blog.

Ricardo G. Francisco disse...

Caro Pedro Arroja,

Comentado e linkado aqui:

http://small-brother.blogspot.com/2007/06/o-erro-de-arroja.html