22 maio 2007

os meus problemas com o liberalismo português (too little, too late)

Quando, já lá vão muitos anos, comecei a ler umas coisas de alguns autores liberais, nomeadamente de Hayek, Mises e Friedman (este último, à época, muito em voga graças ao programa televisivo «Free to Choose»), pareceu-me estranho que, em Portugal, com a excepção de uma reduzidíssima minoria de pessoas, praticamente ninguém conhecesse estes autores, nem estivesse especialmente interessado em debater o que diziam.

Pouco tempo depois, por altura da segunda metade dos anos 80, quando alguns países da Europa continental os recuperaram, muito em parte graças a alguns excelentes divulgadores franceses, como Henri Lepage e Guy Sorman (mais o primeiro do que o segundo), continuámos a passar-lhes a latere. É certo que Lepage viu um livro seu traduzido em Portugal e Sorman dois ou três. Mas, contudo, as fontes originais continuaram desconhecidas e o liberalismo de raiz anglo-saxónica e austríaca, a que poderíamos chamar de evolucionista, empirista e anti-estatista, por contraposição ao liberalismo revolucionário, racionalista e jacobino permanecia praticamente ignorado. De Hayek, por exemplo, um autor mundialmente conhecido e traduzido, só me lembro de uma edição portuguesa do «The Road to Serfdom», de Orlando Vitorino, datada do final da década de 70. De Mises existe uma tradução velhinha do «Liberalismus» feita pelo Professor Teixeira Ribeiro, na remota década de 30. Dos outros autores clássicos (lato sensu), com a excepção de Locke, também não conheço nada. Das correntes norte-americanas, concretamente do libertarismo rothbardiano e randiano, ou de Nozick (já para não falar nos mais recente, como Jasay) idem aspas. Nem mesmo os americanos galardoados com o Nobel, como Friedman, Becker, ou Buchanan pareciam interessar às nossas editoras, às nossas universidades e aos nossos autores.

Com a excepção de João Carlos Espada, José Manuel Moreira e Pedro Arroja, os três revelados ao grande público português no final da década de 80, ninguém parecia estar disposto a patrocinar esta forma de liberalismo, segundo asseguravam esses autores, a sua forma original e dominante no mundo anglo-saxónico. De facto, em Portugal o liberalismo continuava a ser uma coisa dos franceses anticlerical e jacobina, perseguidora dos reis e dos crentes, uma bizantinisse carbonária saída da pistola do Buiça e da espada flamejante de D. Pedro IV. A direita portuguesa detestava-o e a esquerda não lhe reconhecia qualquer mérito, invocando sempre a autenticidade da matriz francesa e do virtuoso e «incorruptível» Maximiliano. A coisa continuou a ser, malgré-tout, própria de seita, na qual eu mesmo me integrava, e por onde não via muito mais gente.

Daí o meu espanto, há quatro anos atrás, quando comecei a aproximar-me da blogosfera nacional, ao constatar uma profusão imensa de blogues e de bloguers liberais. Liberais de inspiração clássica, distanciados do liberalismo francês. Para além do mais, profundos conhecedores dos seus principais autores e das suas obras. Em suma, gente intelectualmente muito bem formada e ainda melhor preparada, muitos deles professores e investigadores universitários que sabiam do que estavam a falar. A sensação que se tinha, e manteve por algum tempo, era a de que o liberalismo tinha invadido o país, caído ninguém sabia bem donde, mas que tinha vindo para ficar e para influenciar decididamente a cultura política nacional.

A evolução da blogosfera liberal conheceu alguns casos de inegável sucesso, que se transpuseram, muitos deles, para os media tradicionais, contribuíram para algumas publicações interessantes, para a criação de certos círculos de divulgação e investigação, para inspirar jornais e jornalistas, e até – pasme-se! – para que o liberalismo passasse a ser um chavão interessante utilizado com frequência por alguns partidos e dirigentes político.

Infelizmente, ao contrário do que seria de esperar, a coisa tem-se vindo a diluir em vez de consolidar. Apesar do tempo percorrido, os contornos do que poderia ser, hoje, um pensamento liberal português estão muito mais indefinidos do que há um ano atrás. As expectativas criadas ficaram muito aquém da evolução que seria legítimo imaginar que pudesse vir a ter, e percebe-se agora que o liberalismo em Portugal tem vindo a perder substância. Quando, por exemplo, alguns protagonistas políticos o referem, ou quando outros dizem que querem fazer dele uma bandeira de intervenção, percebe-se que não sabem exactamente do que estão a falar. Por outro lado, certos casos de genuína intervenção liberal têm preferido a radicalização jacobina dos valores do anticlericalismo e de uma espécie de ética republicana ressuscitada dos primórdios do século passado (a liberdade cívica, o laicismo militante, o apelo ao intervencionismo estatal para a defesa de valores tidos por fundamentais, como o «direito ao corpo das mulheres», etc.), aos fundamentos do liberalismo clássico, a saber, a defesa da liberdade individual, da propriedade, da desestatização, do mercado e da liberdade contratual. Quase podemos dizer que a tradição francesa continental prevaleceu novamente sobre a sua concorrente, e que como uma gigantesca floresta deixada à solta por quem não a sabia dominar, devorou os vestígios da civilização. Por outras palavras, esta brevíssima «primavera liberal» portuguesa, com avançados sinais actuais de senilidade precoce, não soube fazer convenientemente a exploração do seu sucesso. É pena. Foi pena.

2 comentários:

JSC disse...

Estás a esquecer as traduções da Europa-América de duas obras de Friedman; Liberdade para escolher e episódios da vida monetária!
Ambos sobre a chancela do editor da europa-américa, Lyon de Castro, conhecido anti-fassista e resistente comunista!Num determinado lfarrabista do Porto ainda estão à venda exemplares do liberdade para escolher.

A tradução do Hayek, tb a tenho. Comprei num alfarrabista.O livro tem o carimbo da biblioteca do CDS!!! Bons tempos desse CDS perdido!

Nozick esta traduzido no Brasil - Jorge Zahar editores. Mas é difícil de arranjar.
E grande parte do Mises está traduzido pelo Instituto Liberal do RJ. Disso é que precisávamos-edições populares e filantrópicas, uma espécie de biblioteca liberal.

Para além disso, parece-me que essa fase de afrouxamento que tu identificas só pode ser combatida com a tomada do poder nos partidos, ou melhor, no partido que pode ser poder e que ainda pode ser reformado - PSD!

Bom texto.
J.

Anónimo disse...

Também, li alguma coisa de Hayek, de Popper, de Mises. Por isso, não posso concordar consigo.
Nunca Hayek defendeu a transposição pura de valores, sem consideração do «contexto» a que se aplicam. Somos Portugueses e como tal partilhamos um património civilizacional, uma mundividência. Desde logo, as traduções não são necessárias num país que sempre conviveu com outras linguas.Não podemos esquecer a nossa mais valia nas relações humanas, a nossa capacidade de improvisar. Nada disto, foi levado em conta pelo liberlismo puro, de matríz austriaca.
Porque, a mensagem liberal nunca nos foi «adaptada», muito embora os esforços não convincentes de Pedro Arroja, de José Moreira e de João Carlos Espada- este último, mais próximo do pragmatismo anglo saxónico do que de qualquer ideia de Karl Popper- ela não passa.
Tente, meu caro. Reescreva o liberalismo em português. E aí sim, valeu a pena.
Bem haja