Cara Mafalda,
Muito antes do Estado existir e aplicar a lei penal aos casos que refere no seu «post» - «não matar o vizinho, o pai, a mãe ou um desconhecido», já as sociedades humanas conheciam essas regras de direito, normalmente, por via consuetudinária, e as acautelavam em tribunais próprios. De resto, nunca as sociedades humanas, mesmo as mais primitivas, tiveram grandes hesitações em proibir o homicídio e em condenar quem o cometesse, em regra, a uma pena da mesma medida do acto ilícito. Isso significa, do ponto de vista liberal, que penso me consentirá manter, que existem regras de vida em sociedade que, nas sociedades livres, os homens vão burilando e sedimentando com o tempo, e que acabam por se transformar em normas jurídicas, deixando de ser assim simples normas sociais. Habitualmente, sobre essas normas existe um consenso generalizado e poucos são os que as questionam. Do ponto de vista liberal, o direito legislado deve ser o reflexo desta ordem jurídica quase espontânea, sendo que os restantes domínios da vida em sociedade devem ser deixados à livre expressão contratual dos directos interessados, isto é, os indivíduos.
Não vejo nisto, muito francamente, qualquer ideia de «individualismo dessolidário», expressão que é sua, a não ser que por isso queira dizer que os estadistas, essa espécie de seres alados e iluminados, sucessivamente, por Deus, pela Razão e pela Democracia, conseguem avaliar melhor e representar mais capazmente os interesses, os anseios e as expectativas dos indivíduos do que eles próprios. A não ser, também, que ache que uma sociedade humana é um agregado transpessoal com alma e vontade próprias. E que, por conseguinte, o direito deva espelhar essa super-estrutura transpersonalista e supra-individual. Nestas hipóteses estaremos, na verdade, em dessintonia profunda: para mim, o direito legislado pelo Estado deve contemplar as regras essenciais da convivência humana e o resto deve ser deixado à liberdade contratual. Logo, não valerá a pena continuarmos por aqui.
Regressando ao problema do aborto, ele não é nas sociedades humanas, desde há muito, um assunto sobre o qual exista uniformidade de pensamento ou de sentimentos, ou, sequer, uma corrente maioritariamente dominante. A própria Igreja Católica teve dúvidas acerca da existência de «animus», isto é, de alma, no embrião até ele se transformar em feto. S. Tomás de Aquino considerava que isso só ocorria na segunda fase e, mesmo assim, muito tardiamente. Dir-me-á, evidentemente, que nessa altura a Ciência não tinha ainda os meios de que hoje dispõe para demonstrar que existe vida humana desde o primeiro momento da concepção. Mas, minha cara Mafalda, não ignorará que S. Tomás e os do seu tempo sabiam bem o que era a concepção e não desconheciam que sem ela o nascimento de um ser humano seria sempre impossível. Note, de resto, que S. Tomás falava em alma e não propriamente em vida.
Como vê, não serei o único com hesitações e com «nins» nesta matéria. Porém, há uma coisa sobre a qual me sinto seguríssimo: que uma rapariga ou mulher que aborta, ainda que o faça impensadamente (o que não acredito), não deve ser levada à justiça dos homens, nem condenada às penas que o actual Código prevê. Não insistirei em fundamentar esta convicção, pedindo-lhe a maçada de ler os meus «posts» anteriores caso tenha interesse em conhecê-la. Contudo, permita-me que lhe faça também eu um desafio: a Mafalda conhecerá, certamente, algumas raparigas e mulheres que abortaram fora das situações previstas no Código Penal em vigor. Presumo mesmo que participará em associações que se dediquem a ajudá-las a evitar que o façam. Já lhe passou alguma vez pela cabeça, cara Mafalda, denunciar os seus «crimes» às autoridades competentes, para que elas possam ser punidas, tal e qual determina a lei penal que a Mafalda quer manter? Não vai responder-me, peço-lhe encarecidamente, que essa missão de «investigação» compete ao Estado e aos seus órgãos de polícia criminal. Sabe bem que essa não é a resposta que poderá dar-me. Eu digo-lhe porque nunca o fez: porque não estaria certo fazê-lo, e a Mafalda e a sua consciência sabem disso.
É isto e isto apenas, que para mim está em causa. Como é evidente, não pretendo que o SNS, serviço público sustentado pelos contribuintes para assistir na doença quem deles precisa, sirva para resolver problemas pessoais que nada têm que ver com a saúde de quem os tem. É aí, cara Mafalda, que devemos fazer apelo à responsabilidade individual, para que cada pessoa tenha bem ciente a dimensão dos seus actos, e não facilitá-los a um ponto em que eles se tornem gratuitos e que sejamos todos nós a sustentá-los, contribuindo, aí sim, para a desresponsabilização individual, com a qual nenhum liberal se sentirá confortável. Não se trata, como vê, de uma linear hesitação económica, mas verdadeiramente de uma questão de ordem moral.
Penso, por último, que a questão do «apriorismo axiológico» na actividade do julgador que referiu no seu «post», está já em cima respondida: a Mafalda parte de um pressuposto errado sobre o que penso, culpa minha certamente, e, por isso, não pode tirar conclusões acertadas. De todo o modo, sintetizo: numa ideia liberal do Direito, o juiz é um intermediário entre o sentimento comum da comunidade e os destinatários do seu poder, ou, então, limita-se a fazer respeitar os vínculos contratuais livremente assumidos pelas partes. O Direito tem que visar a justiça e não propriamente a ética. Aliás, quase sempre que o legislador fundamenta os seus actos normativos na ética, invariavelmente na sua ética, é porque pretende extrapolar os limites mais do que razoáveis do seu poder, quando não instaurar tiranias.
Ora veja lá se isto tem aplicação no seu modelo jurídico-penal a respeito do aborto.
Cordiais cumprimentos,
Rui de Albuquerque
Muito antes do Estado existir e aplicar a lei penal aos casos que refere no seu «post» - «não matar o vizinho, o pai, a mãe ou um desconhecido», já as sociedades humanas conheciam essas regras de direito, normalmente, por via consuetudinária, e as acautelavam em tribunais próprios. De resto, nunca as sociedades humanas, mesmo as mais primitivas, tiveram grandes hesitações em proibir o homicídio e em condenar quem o cometesse, em regra, a uma pena da mesma medida do acto ilícito. Isso significa, do ponto de vista liberal, que penso me consentirá manter, que existem regras de vida em sociedade que, nas sociedades livres, os homens vão burilando e sedimentando com o tempo, e que acabam por se transformar em normas jurídicas, deixando de ser assim simples normas sociais. Habitualmente, sobre essas normas existe um consenso generalizado e poucos são os que as questionam. Do ponto de vista liberal, o direito legislado deve ser o reflexo desta ordem jurídica quase espontânea, sendo que os restantes domínios da vida em sociedade devem ser deixados à livre expressão contratual dos directos interessados, isto é, os indivíduos.
Não vejo nisto, muito francamente, qualquer ideia de «individualismo dessolidário», expressão que é sua, a não ser que por isso queira dizer que os estadistas, essa espécie de seres alados e iluminados, sucessivamente, por Deus, pela Razão e pela Democracia, conseguem avaliar melhor e representar mais capazmente os interesses, os anseios e as expectativas dos indivíduos do que eles próprios. A não ser, também, que ache que uma sociedade humana é um agregado transpessoal com alma e vontade próprias. E que, por conseguinte, o direito deva espelhar essa super-estrutura transpersonalista e supra-individual. Nestas hipóteses estaremos, na verdade, em dessintonia profunda: para mim, o direito legislado pelo Estado deve contemplar as regras essenciais da convivência humana e o resto deve ser deixado à liberdade contratual. Logo, não valerá a pena continuarmos por aqui.
Regressando ao problema do aborto, ele não é nas sociedades humanas, desde há muito, um assunto sobre o qual exista uniformidade de pensamento ou de sentimentos, ou, sequer, uma corrente maioritariamente dominante. A própria Igreja Católica teve dúvidas acerca da existência de «animus», isto é, de alma, no embrião até ele se transformar em feto. S. Tomás de Aquino considerava que isso só ocorria na segunda fase e, mesmo assim, muito tardiamente. Dir-me-á, evidentemente, que nessa altura a Ciência não tinha ainda os meios de que hoje dispõe para demonstrar que existe vida humana desde o primeiro momento da concepção. Mas, minha cara Mafalda, não ignorará que S. Tomás e os do seu tempo sabiam bem o que era a concepção e não desconheciam que sem ela o nascimento de um ser humano seria sempre impossível. Note, de resto, que S. Tomás falava em alma e não propriamente em vida.
Como vê, não serei o único com hesitações e com «nins» nesta matéria. Porém, há uma coisa sobre a qual me sinto seguríssimo: que uma rapariga ou mulher que aborta, ainda que o faça impensadamente (o que não acredito), não deve ser levada à justiça dos homens, nem condenada às penas que o actual Código prevê. Não insistirei em fundamentar esta convicção, pedindo-lhe a maçada de ler os meus «posts» anteriores caso tenha interesse em conhecê-la. Contudo, permita-me que lhe faça também eu um desafio: a Mafalda conhecerá, certamente, algumas raparigas e mulheres que abortaram fora das situações previstas no Código Penal em vigor. Presumo mesmo que participará em associações que se dediquem a ajudá-las a evitar que o façam. Já lhe passou alguma vez pela cabeça, cara Mafalda, denunciar os seus «crimes» às autoridades competentes, para que elas possam ser punidas, tal e qual determina a lei penal que a Mafalda quer manter? Não vai responder-me, peço-lhe encarecidamente, que essa missão de «investigação» compete ao Estado e aos seus órgãos de polícia criminal. Sabe bem que essa não é a resposta que poderá dar-me. Eu digo-lhe porque nunca o fez: porque não estaria certo fazê-lo, e a Mafalda e a sua consciência sabem disso.
É isto e isto apenas, que para mim está em causa. Como é evidente, não pretendo que o SNS, serviço público sustentado pelos contribuintes para assistir na doença quem deles precisa, sirva para resolver problemas pessoais que nada têm que ver com a saúde de quem os tem. É aí, cara Mafalda, que devemos fazer apelo à responsabilidade individual, para que cada pessoa tenha bem ciente a dimensão dos seus actos, e não facilitá-los a um ponto em que eles se tornem gratuitos e que sejamos todos nós a sustentá-los, contribuindo, aí sim, para a desresponsabilização individual, com a qual nenhum liberal se sentirá confortável. Não se trata, como vê, de uma linear hesitação económica, mas verdadeiramente de uma questão de ordem moral.
Penso, por último, que a questão do «apriorismo axiológico» na actividade do julgador que referiu no seu «post», está já em cima respondida: a Mafalda parte de um pressuposto errado sobre o que penso, culpa minha certamente, e, por isso, não pode tirar conclusões acertadas. De todo o modo, sintetizo: numa ideia liberal do Direito, o juiz é um intermediário entre o sentimento comum da comunidade e os destinatários do seu poder, ou, então, limita-se a fazer respeitar os vínculos contratuais livremente assumidos pelas partes. O Direito tem que visar a justiça e não propriamente a ética. Aliás, quase sempre que o legislador fundamenta os seus actos normativos na ética, invariavelmente na sua ética, é porque pretende extrapolar os limites mais do que razoáveis do seu poder, quando não instaurar tiranias.
Ora veja lá se isto tem aplicação no seu modelo jurídico-penal a respeito do aborto.
Cordiais cumprimentos,
Rui de Albuquerque
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