21 novembro 2006

laissez-faire, laissez-passer




Cara Mafalda,

Claro que o homem vive necessariamente em comunidade, por via da qual cresce e se potencia, na qual desenvolve laços, cria relações, estabelece instituições, coopera, litiga e, na medida do possível, harmoniza com o(s) outro(s) a sua existência, tendo em vista uma vida feliz e um destino melhor para si e para os seus filhos. O que de essencial nos separa, ao que julgo ter percebido do muito que escreveu no seu último «post» (escolheu-lhe bem o título, já que a lenta compreensão é uma das minhas públicas características pessoais), é que enquanto a Mafalda concebe a liberdade individual como algo «apenas pensável na abertura de pontes comunicantes com o outro», eu vejo-a como o fundamento primeiro sobre o qual se pode erguer, e sem o qual nunca se poderá erguer, uma comunidade humana. Isto é, se, para a Mafalda, a liberdade está a jusante, para mim ela encontra-se a montante. Por outras palavras: só homens livres formam uma sociedade livre; não é esta que lhes concede o direito à liberdade.

O que nos remete para o problema da ordem social. Pergunta a Mafalda onde vou eu buscar essa ordem que brota espontaneamente? Aqui, não responderei por mim, mas usarei também as palavras de outros Mestres: «Laissez faire, laissez passer», minha cara. Se não se satisfizer com esta máxima tão vulgarizada e tantas vezes criticada, permita-me, então, a ousadia de a remeter para a filosofia política de Hayek e da análise que ele fez da «Grande Sociedade» e dos processos de formação das suas instituições sociais, políticas e jurídicas. Não tendo a pretensão de sintetizar em poucas palavras o que ele tratou ao longo de muitos anos em milhares de páginas, sempre lhe direi que as instituições de uma sociedade livre fundam-se na experiência, na selecção natural dos melhores procedimentos sociais, na exclusão dos mais inconvenientes encontrados pelo erro, na verificação prática da sua utilidade. Estas instituições vão-se sedimentando com o tempo, transmitindo pela tradição, e positivando pela força do costume e da sua aceitação pelos tribunais e pelo próprio legislador. Este direito, que colhe na experiência, no costume e na tradição, não é, de facto, o direito de inspiração romano-justinianeia que desde há muito impera na Europa continental. Mas poderá certamente encontrar ainda vestígios fortes da sua existência no direito inglês e na generalidade dos sistemas jurídicos de influência anglo-saxónica.

Ainda assim, penso que não duvidará que toda a história do medievalismo jurídico europeu continental foi, desde aí e até ao iluminismo, a do conflito entre o direito consuetudinário local secular e o direito positivado pela lei centralizadora de inspiração justinianeia, E que muitas vezes os próprios monarcas tiveram que cercear os seus ímpetos de concentração de poder aceitando o costume local, quando não fazendo dele a própria lei. Sabe, seguramente, que as nossas três Ordenações admitiram o costume contra legem, assim ele cumprisse 40 anos de antiguidade e tivesse sido fundamento de, pelo menos, duas sentenças judiciais. E que este regime de concorrência entre diferentes fontes de direito só teve fim com a reforma pombalina de 1769, a que se deu o nome ignaro de Lei da Boa Razão. 1769, coisa recente, portanto. É que o paradigma da lei eticamente valorada, logo, absoluta, ou por outra, valorada eticamente pela autoridade do legislador, nem é de sempre muito menos de todos os lugares, cara Mafalda. A ideia de que a lei é a expressão da vontade do imperador, mais tarde do monarca e, por fim, do poder político sufragado é, do ponto de vista liberal, uma corrupção do próprio direito. Pelo menos, do direito de uma sociedade livre.

Para a Mafalda «o direito resolve problemas práticos a vários níveis. Ao fazê-lo faz escolhas.» Sem dúvida. Em sua opinião, o legislador deverá fazer muitas ou poucas escolhas? Deverá retirar a «liberdade para escolher» (a minha homenagem a Milton Friedmnan) aos cidadãos ou respeitá-la? E, pergunto-lhe: quem estabelece as normas jurídicas? Responderá, certamente, «o legislador». E fundado em quê, insisto? Dir-me-á «na ética». Então, eu pergunto-lhe, onde estava a ética do Nacional-Socialismo e das suas leis raciais? Ou a ética do Comunismo e das suas leis que proibiam a religião e a propriedade? Ou a ética das nacionalizações no pós-25 de Abril. Ou, para não irmos a exemplos extremos, a ética do direito vigente em Portugal que nos condena a entregar ao Estado mais de metade do produto do nosso trabalho, a troco de uma justiça social redistributiva que não vemos em lado nenhum? É que, cara Mafalda, o legislador tem sempre uma ética que invoca em seu favor. Infelizmente, nem sempre a ética dessa ética é muito ética. A ética nazi, a ética comunista, a ética colectivista fundam-se em valores que aqueles que os defendiam e defendem entendem acima de toda a refutação. O Estado de Direito Social, note bem, de Direito Social, tem uma ética. Então não tem!? A ética de proteger os pobrezinhos, redistribuindo rendimentos. A Mafalda vai nessa? Não acredito.

É por isto, cara Mafalda, que nós, os liberais, não confundimos Estado com ética, direito com ética, política com ética. A política, o Estado e o direito têm o seu domínio natural, que não deve ser o de fazer escolhas pelos indivíduos que estes mesmos possam fazer, menos ainda, fundando essas escolhas numa ética cuja dimensão «metajurídica» começa e termina na cabeça do legislador. Como dizia Popper, nada ou ninguém nos pode garantir os talentos, a boa vontade, a honestidade, isto é, a ética de quem maneja o poder público. Mesmo que esta última fosse possível de assegurar, poderia não ser suficiente. Ou será que duvida que Chamberlain teve um comportamento ético na forma como lidou com Hitler? E que, se calhar, Churchill terá sido menos ético nos seus procedimentos em relação ao ditador alemão? A qual dos dois dá, hoje, razão? É por isto também que, para nós liberais, esse poder soberano ? no fim de contas, o de alguém decidir pelos outros - deve ser mínimo, tão mínimo quanto o possível. Conhecendo os homens e desconfiando deles quando lhes é concedido ascender ao sublime patamar do poder, os liberais entendem ainda hoje, como Locke no passado, que o governo deve reduzir-se às mínimas instituições que assegurem a sua segurança, a sua propriedade, isto é, a liberdade.

Não quero terminar sem a felicitar. Porque, ao repto que lhe lancei sobre se participaria às autoridades um eventual crime de aborto de que tivesse conhecimento directo, respondeu que decidiria «unicamente, ao nível da minha consciência». Está, assim, a afastar a aplicação objectiva da lei que pune uma mulher que abortou com pena de prisão, para decidir por si, pelos seus critérios, com a sua consciência e no pleno uso do seu individualismo. Uma atitude liberal, em suma. Parabéns.

Com os melhores cumprimentos,

Rui de Albuquerque

P.S.: Espero que, desta vez, as gravuras que ilustram o «post» não mereçam o seu reparo. A mim, como sou liberal, dão-me sempre algum prazer. E muito feliz ficaria se, um dia, contribuissem também para reforçar os seus argumentos.

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