11 janeiro 2006

forma e conteúdo

Num «post» abaixo editado fiz uma referência à alínea b) do artigo 288º da CRP, que consagra, entre os limites materiais à sua revisão, a «forma republicana de governo», qualificando esta designação de «quase analfabeta», «não fora arcaica, oitocentista e jacobina». Alguns leitores indignaram-se, defenderam a legitimidade da tipologia, citaram em sua defesa a Constituição dos Estados Unidos da América, autores clássicos e contemporâneos, e mandaram-me estudar o assunto. Foi o que fiz esforçadamente ao longo dos últimos dias, tendo chegado às conclusões que passo a enunciar.

Existem, sem dúvida, uma enorme variedade de classificações das formas de governo. Desde a Antiguidade Clássica, com os gregos e romanos, aos nossos dias, não houve um só autor que versasse sobre política que não tenha cedido à tentação de o fazer. Convém, porém, apurar se essas classificações estão em dia e se são conformes à natureza do governo actual e da titularidade das suas funções.

É o que sucede, por exemplo, com a citada Constituição dos EUA, que data de 1787. Ou com as obras de Montesquieu e de outros clássicos. Nesta altura e até ao advento do constitucionalismo europeu, a dicotomia monarquia-república servia perfeitamente para distinguir e agrupar as principais formas de ordenação do poder político estadual. Na verdade, o exercício, ou a responsabilidade jurídico-política pelas funções tradicionais de governo - legislativa, política e, dentro desta, a administrativa – cabia ou a magistraturas funcionalmente autónomas dentro de Estados que não eram chefiados por um Rei, ou competiam a este último directamente, modelo largamente predominante na Europa.

Assim, sucede que até ao constitucionalismo oitocentista, o Rei era simultaneamente chefe de Estado e do governo, ainda que neste último caso, e ao longo do século XIX, delegasse frequentemente essa função num ministro nomeado por si. Nessa medida, é correcto afirmar-se que, por esta altura, a monarquia era uma forma de governo, para além de ser a própria forma que o Estado assumia, representada pela tipologia da sua chefia.

Ora, sucede que na transição do absolutismo para a monarquia constitucional, os monarcas deixaram de dispor de quaisquer poderes governativos, porque se entende e bem, que sendo a sua legitimidade hereditária e não democrática, eles não podem exercer poderes para os quais não foram mandatados pelos seus legítimos titulares – os cidadãos. Nessa medida, a monarquia deixou de ser uma forma de governo, embora possa servir como qualificativo da forma simbólica do Estado, representada pela sua chefia, em contraposição à república.

Assim, as formas, ou sistemas de governo (designação que prefiro, por realçar o aspecto dinâmico das relações entre os órgãos de soberania), considerando apenas aqueles que cabem nos regimes políticos (outra classificação a apurar) democráticos, que me parecem mais apropriados aos dias de hoje, são o parlamentarismo, o presidencialismo, o semipresidencialismo e o directório (reportando-se ao modelo suíço e não ao directório da Revolução Francesa). Cada um destes sistemas terá, naturalmente, as suas variantes. Quanto à distinção entre república e monarquia esta fica, assim, arredada para a forma do Estado.

Em conclusão, no que a nossa Assembleia Constituinte foi «quase analfabeta», não fora profundamente «arcaica, oitocentista e jacobina», foi em qualificar a forma de governo semipresidencialista que instituiu, como «forma republicana» e transformá-la em limite material da própria revisão constitucional. Por este último aspecto foi, também, jacobina. Por ter empregue uma designação vinda da I República (cujo espírito pairava pelos cadeirões e nos ares de S. Bento) foi arcaica e oitocentista: na verdade, quando se implantou a República o Rei já há muito não governava. E, já agora, foi insuportavelmente autoritária, ao supor poder impor ad eternum o nosso modelo formal de Estado.

4 comentários:

Pedro Sá disse...

Custa assim tanto a perceber que FORMA DE GOVERNO e SISTEMA DE GOVERNO são duas coisas diferentes ?

Anónimo disse...

Ó homem de Deus, veja lá se percebe o que significa o termo «governo» para o Direito Constitucional.

Anónimo disse...

Até lhe dou umas sugestões, se quiser aprofundar o seu conhecimento sobre as teorias clássicas das formas ou sistemas de governo: precisamente a «Teoria das Formas de Governo», do Noberto Bobbio. O Duverger também escreveu muito sobre o tema. O Burdeau, idem. Se estiver interessado numa bibliografia mais detalhada, caso esteja a fazer um mestrado ou doutoramento na área, é só dizer. Nestas coisas, quando são tratadas com algum rigor científico, há que ter um certo cuidado para não se dizerem asneiras comprometedoras.

Anónimo disse...

Forma de Estado, Forma de Governo, Sistema de Governo, seja o que for (deixemos essa precisão, sem dúvida pertinente em esferas mais restritas - essas de doutoramento ou mestrado), a essência do que é escrito permanece perfeitamente válida.