06 janeiro 2006

as pilinhas dos liberais

O Henrique Raposo assinou um «post» intitulado «Sem Estado, sem comunidade política, não há Liberalismo», que gostaria de comentar.
O ponto que defende é, se bem o compreendi, o seguinte: os liberais «economicistas» tendem a reduzir a complexa realidade social a uma ideia mítica e inexistente de «mercado», que expele da realidade a política e a sua forma societária de se organizar, que, segundo o Henrique, é o Estado. Conclui, dizendo que estes liberais são, no fim de contas, esquerdistas e, em última análise, estão a rejeitar a boa tradição liberal, logo, não são verdadeiros liberais.

Já em tempos, noutras paragens, eu argumentei com o Henrique a propósito de Nicolau Maquiavel e da imensa utilidade que ele teve para consolidar a atitude do liberalismo perante o Estado. É que, ao «dessacralizar» este último, ao pôr a nu a frieza dos motivos dos homens que o gerem, a célebre «virtú» do príncipe, rejeitando a visão – essa sim idílica – de que o estadista é alguém que se guia pelo interesse e pelo bem público, Maquiavel deu razão àqueles que perante o Estado e os seus governantes têm, por princípio, uma posição de cautela e de desconfiança.

E esses, meu caro Henrique Raposo, são os liberais. Por mais voltas que dê, excluindo o soit disant «liberalismo» jacobino francês e o indevidamente designado «liberalismo» norte-americano, todas as correntes liberais têm perante o Estado a mesma posição de cautela e prudência, que os leva a preferi-lo sempre muito limitado, a amplo e poderoso, ainda que o pretenda ser pelos melhores e mais nobres sentimentos comunitários.

Mas, para o liberalismo, seja ele uma ideologia (conceito que é, como sabe, impreciso e sujeito a múltiplas interpretações), uma filosofia, ou uma mera atitude existencial, a defesa do Estado mínimo é de natureza ética e moral, e não meramente «economicista». Quando os liberais clássicos, na senda de Adam Smith, falam no mercado e na mão invisível, noções que nunca enjeitaram, não é, como sabe, ao Mercado do Bulhão ou à Praça de Alimentação do Centro Comercial Colombo (para não sermos bairristas) que se estão a referir. O «mercado» é a ordem social não intervencionada pelos poderes públicos, a «Grande Sociedade» de que Hayek falava, que se ordena espontaneamente através da justa composição directa e contratual dos interesses dos indivíduos que a compõem. A «mão invisível» corresponde ao conceito de «catalaxia», que Mises e Hayek também recordaram, e que é, no fim de contas, a ordenação natural e espontânea da comunidade.

Por mais voltas que se dê, os liberais acreditam nisto. É por isso que defendem a liberdade e a propriedade como valores éticos e não políticos, ou, se preferir, metapolíticos. Porque estes constituem o ponto de partida para a realização de cada homem no seu direito à felicidade e à dignidade. Os liberais acreditam que os indivíduos são capazes, ou mais capazes, de por si próprios concretizarem os objectivos que pretendem para as suas vidas, assim não se vejam reduzidos nesses direitos. Aceitam, obviamente, que a comunidade se organize em instituições (as normas jurídicas, os tribunais, o «Estado» e outras) cujo único fim seja defender esses direitos e não defenderem-se a si mesmas, através dessa indeterminável abstracção que é o «interesse público». Em contrapartida, há quem entenda que não: que os homens necessitam de quem os substitua nas suas decisões que, no fim de contas, dizem respeito às suas próprias vidas. Para isso, dizem, existe o Estado, enquanto realidade objectiva, incontornável e insubstituível. Mas estes, caro Henrique, tenha lá paciência, liberais não serão certamente. Por mim, costumo chamar-lhes socialistas.

Refira-se ainda que a organização política da comunidade não tem de ser forçosamente estruturada em torno do paradigma do Estado contemporâneo. Ao longo da História e do tempo, outros tipos e modelos de organização política societária podem ser facilmente encontrados. O próprio Estado contemporâneo não é de todo em todo igual: ele há Estados unitários e centralizados, descentralizados e regionalizados, federais, etc.. Ou seja, o modo de organizar o poder no Estado contemporâneo não é constante. Por outro lado, é mais do que legítimo presumir que a globalização e o desenvolvimento tecnológico multipliquem quase ao infinito os centros de poder, os disseminem e tornem insusceptíveis de se manterem enquadrados no modelo mais odioso do estatismo contemporâneo, que é aquele em que Portugal vive, e que é herdeiro da tradição voluntarista e cartesiana (poderei explicar porquê) da Revolução Francesa. Por conseguinte, os liberais devem, ou melhor, têm a obrigação, de pensar politicamente para além do Estado e deste Estado em particular. Ficar agarrado a isto, a pretexto da realpolitik, é renegar a tradição liberal de fazer prevalecer os valores individuais e sociais, sobre os valores colectivistas e estatizantes.

Por fim, e pedindo-lhe desculpa pelo atrevimento do título deste «post», deixe-me explicá-lo e, peço-lhe, não me leve a mal por isso.
Em tempos, conheci alguém responsável por uma organização onde trabalhavam muitas pessoas, que, cheio de aturar disputas internas por pequenos poderes e ridículas influências, costumava dizer que pareciam miúdos a comparar os tamanhos das pilinhas, para, na ânsia de quererem parecer adultos, verem quem as tinha mais compridas. Perdoe-me que lhe diga, mas que as picardias entre o Blasfémias e o Acidental (nas quais tive, em tempos, a minha quota parte de responsabilidade, pela qual me penitencio), para ver quem é mais ou menos liberal, mais ou menos de direita, começam, francamente, a ficar a este nível.
Concentremo-nos mas é no essencial e deixemo-nos de «medições» acessórias: em contribuir para a formação de uma opinião liberal consistente, ainda que plural, que permita criar na opinião pública um forte sentimento da necessidade de um reformismo liberal em Portugal. Se o não conseguirmos fazer neste momento, em que a descrença perante o Estado intervencionista que temos é total, não o faremos nunca. E, disso, não devemos ser politicamente desculpados.

7 comentários:

Gabriel Silva disse...

brilhante, como sempre

CAA disse...

Rui,
Rebentaste com a escala!

LA disse...

O que precisava ser dito.

AM disse...

Uma declaração de fé bem escrita.
Não deixa porém de ser apenas isso uma declaração de fé, uma vontade de...
Infelizmente a realidade não é como gostaríamos que fosse, ou seja o produto das vontades comuns daqueles que pensam como nós, mas sim o resultado dos conflitos entre os mais variados interesses individuais e as mais variadas concepções de organização das sociedades.
O resultado não é o que emerge das vontades dos "melhores" dos "mais sábios" ou dos "mais pios" mas sim dos "mais capazes" e dos "mais fortes".
Assim as teorias do "caos" ou este tipo de "anarco-liberalismo" que, por moda, tantos dizem defender, pode ter a vantajem, em sua opinião, de se poder ser "anti-socialista" (porque sim) sem se ser obrigado a defender de (mais ou menos justas) acusações de "conservadorismo" ou "reaccionarismo", não levam a mais nada do que isto, "bem intencionadas(?)" manifestações de fé.
De resto, o paraíso, como o pintam os católicos e outros cristãos, também devia ser bonito de ver....

AMNM

André Azevedo Alves disse...

Exemplar.

Luís Aguiar Santos disse...

Muito, muito bom.

Anónimo disse...

A minha ficou maior, ao ler o teu texto.

:-)