Segundo Vasco Pulido Valente, há vinte anos atrás, em 1984, numa crónica publicada no Diário de Notícias:
«Uma Casa Portuguesa
Um indivíduo anda aborrecido com o emprego que tem, ou precisa de emprego ou ambiciona, por razões óbvias, ganhar mais. As coisas correm-lhe cada vez pior e as empresas privadas não o querem. Esclarecidamente, o indivíduo pensa no Estado, a que supõe o dever de lhe dar uma ocupação e proventos compatíveis. Não encontra nada ou o que encontra não o satisfaz.
Deste fracasso o indivíduo retira a conclusão de que o Estado não cumpre cabalmente as suas funções. Os seus enormes talentos merecem com certeza ser usados e seriam com certeza usados por um Estado que se prezasse. O indivíduo concebe então o plano simples de consequir que o Estado reconheça a sua utilidade. Procura dentro de si sinais de distinção. Depressa descobre uma especialidade, um amor, uma causa. Digamos, por exemplo, a casa portuguesa.
A casa portuguesa típica, que lhe despertou sempre surtos de paixão, desaparece lentamente da paisagem. As câmaras não a protegem; a Fundação Gulbenkian ignora-a; o público despreza-a. A preservação da casa portuguesa constitui um interesse social, digno da atenção do Estado. Aliás, todos os interesses sociais são dignos da atenção do Estado. O indivíduo decide, portanto, persuadir o Estado a encarregá-lo de preservar a casa portuguesa, tão ameaçada pela incúria, por autarcas néscios e por emigrantes.
Convoca três amigos: dois arquitectos e um autoproclamado sociólogo, como ele convencidos da sua importância e carentes de uns dinheiros. Os quatro põem-se em campo. Trata-se de obter acesso a um ministro ou a um secretário de Estado, através de relações pessoais ou de influências partidárias. O ideal é escolhê-lo num departamento com objectivos tão etéreos e brumosos como a própria preservação da casa portuguesa: a Cultura, a Qualidade de Vida, a Família, o Ordenamento Teritorial, a Paz nas Consciências. Em rigor, qualquer serve, mas estes apreciam em particular os projectos fantásticos.
Imaginemos que o indivíduo e os três amigos se apoderam do ministro da Cultura. Tal ministro, principalmente se, como com frequência sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar indiferença seja pelo que for que se apresente como Cultura (com C grande). No «Botequim», Natália Correia vela. A esperteza reside em que tudo lhe pode ser apresentado como Cultura, até Natália Correia e a preservação da casa portuguesa. Intimidado, aflito, prevendo críticas devastadoras à sua relutância em preservar a casa portuguesa, o ministro rende-se. Discretamente, e supondo assim desembaracar-se do sarilho, nomeia por despacho uma Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa, com o indivíduo e os três amigos, que passam a receber a remuneração mensal de cento e cinquenta contos, para o chefe,e de cem cada, para os comparsas.
Ganhou-se a primeira balalha. O indivíduo adquiriu uma posição oficial. O próximo passo consiste em montar cerco ao gabinete do ministro para lhe subtrair «espaço», isto é instalações. Como preservar a casa portuguesa nos corredores ou nos cafés? Sem telefones? Sem um sítio para guardar papéis e atender pessoas? Os argumentos parecem racionais, a reivindicação justa. Comprometido no princípio, o ministro volta a render-se. A Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa instala-se em duas assoalhadas, num canto obscuro do ministério.
Daí reclama telefones, um contínuo (para recados), uma escriturária-dactilógrafa e um técnico de terceira, destacados de outros serviços ou contratadoos de fresco entre familiares e indigentes. Como recusar pedidos tão lógicos e triviais? Existe a Comissão, existem duas assoalhadas; o resto segue-se. O trabalho vai, enfim, começar a sério.
A Comissão produz, após esforços esplêndidos, um documento de dezassete páginas com o título: «A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de uma Problemática, a NÍvel Urbano e Rural». Forte de semelhante obra, entra na matéria. Pouco a pouco, estende os seus tentáculos. Ocorre-lhe desde logo que os seus objectivos são intradepartamentais. A casa portuguesa também é da responsabilidade dos ministérios das Obras Públicas e Habitação, da Qualidade de Vida e dos Assuntos Sociais. A Comissão exige, por consequência, que se forme uma subcomissão com «representantes qualificados dessas áreas», e que se lhe atribuam os respectivos subsídios. Requisita, evidentemente, um carro para as tarefas de coordenação (e para ir a Sintra aos domingos). Mas não se esquece nem das autarquias, nem dos emigrantes. Cheios de zelo, os seus membros partem para a província, enquanto o chefe, com mais majestade, «se desloca» às colónias portuguesas no estrangeiro, com o objectivo de «manter o perfil» das nossas queridas aldeias.
Entretanto, o chefe já informou o ministro da impossibilidade física de prosseguir estas enérgicas actividades em duas meras assoalhadas. Em dura luta com várias direcções-gerais, institutos e gabinetes, a Comissão acaba por conquistar mais cinco e aumenta o seu pessoal de sete para vinte e sete. Chegou a altura de se ocupar da decisiva questão dos «contactos internacionais». A inutilidade notória do exercício, assegura que a Comissão brilhará. No Conselho da Europa, na UNESCO, em viagens diplomáticas à Assíria ou ao Daomé, o chefe e os sócios discutirão moções, aprovarão recomendações, estudarão acordos de intercâmbio, comerão jantares e tirarão retratos. O mundo ficará sabendo que Portugal, país civilizado, se preocupa com a preservação da casa portuguesa. O orçamento da Comissão subiu de três mil contos por ano para cinquenta mil, o que a torna uma coisa digna de respeito e, pelo menos, de uma condecoração da Embaixada Francesa.
A Comissão, porém, é precária. Não tem lei orgânica e não tem quadro. Acima de tudo, não tem quadro. Os seus membros e empregados vivem no risco de despedimento, o que compreensivelmente os perturba, impedindo-os de trabalhar como gostariam. Para eles, os seus inestimáveis serviços justificam, mais, clamam, que lhes seja concedida segurança e aposentadoria. O ministro da Cultura entende esta angústia, porque aprecia que os seus subordinados o estimem. O ministro das Finanças, que não entra no ministério da Cultura, não se comove tanto. Mas é-lhe explicado o alcance da preservação da casa portuguesa, a sua indispensabilidade, o prestígio que a Comissão adquiriu em Bogotá e em Munique, e ele contrariadamente cede.
A Comissão transforma-se, deste modo, em Instituto papa a Preservação da Casa Portuguesa, com um quadro de oitenta lugares, sendo cinquenta instantaneamente preenchidos. Muda de instalações, recruta telefonistas, motoristas, contínuos, técnicos, conselheiros, assessores. Gasta agora duzentos mil contos. O chefe inscreve-se no PSD e fala-se discretamente dele para secretário de Estado, em parte por causa de um livro de excessivo mérito chamado «A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de Uma Problemática, a Nível Urbano e Rural».
A moral da história é a seguinte: se amanhã desaparecessem duzentos mil funcionários públicos, ninguém, excepto os próprios, daria por nada. Ou daria - daria porque pagava metade dos impostos.»
Diário de Notícias, 5 de Fevereiro de 1984.
07 janeiro 2006
para que serve o estado?
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3 comentários:
Brilhante e terrivelmente actual.
Exactamente.
Pasmo como "involuímos" desde 1984.
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