Assumamos uma atitude liberal perante o «Estado»: aceitemo-lo como uma instituição humana, de formação secular, gerada pelos homens para dar resposta a necessidades sentidas.
Posto isto que, no essencial, significa aceitar a origem do Estado num pacto social livremente assumido entre os homens, a atitude liberal não tem de conformar-se com aquilo que o Estado hoje é e, sobretudo, no que o foram transformando os seus responsáveis, reconheça-se, muitas vezes a pedido dos próprios cidadãos.
O Estado não foi, por outro lado, uma realidade uniforme e constante no tempo e no espaço. Foi diluído e fragmentado na Idade Média, centralizador no Renascimento e na modernidade, terrorista no absolutismo, tolerante na Revolução Industrial, programático, totalitário e intervencionista no século XX. A unificação do Reino, personificada pela «Coroa» medieval, verdadeiro antecedente do Estado moderno, iniciou um processo de centralização e de supressão de poderes civis que, com raras excepções, não tem parado de crescer. Da necessidade de uma organização comunitária que defendesse os direitos individuais, que, se preservados, naturalmente resultariam em benefício de todos, rapidamente se chegou ao conceito de «interesse público», sem rosto nem destinatário directo, cuja determinação compete a quem detém o poder, ao sabor de ideologias, carismas, personalidades, ou seja, da arbitrariedade quase absoluta. No passado, sob um mesmo território exerceram-se poderes distintos sobre os mesmos indivíduos. O sistema personalista de aplicação do direito, por exemplo, permitiu que populações cultural e civilizacionalmente muito distintas co-habitassem pacificamente no mesmo território.
Numa perspectiva liberal, o Estado é uma agência funcional, isto é, que desempenha funções delimitadas pelos direitos e pelas necessidades individuais Pode mesmo, em teoria, ser fragmentado em tantas organizações quantas as finalidades a cumprir e não carece de unidade soberana, de território próprio, ou de uma população de que aproprie e tome como sua. A sua gestão, isto é, o seu modo de exercício, também não necessita de legitimidade democrática universal, manifestada pelo sufrágio rotineiro, nem de ser desempenhado por instituições representativas. Na verdade, a titularidade dessas instituições pertence, cada vez mais, aos representantes não da colectividade (conceito indeterminado e indeterminável), mas de pequenos grupos de interesses que são, já não os partidos políticos (no sentido de associações de grupos de cidadãos), mas os seus reduzidos directórios e aparelhos.
Quando Max Weber enunciou o conceito de Estado como o exercício monopolista e legítimo da violência, estava a descrever o modelo de Estado contemporâneo sob o qual temos vivido. Não é um Estado liberal (se é que estes dois termos não encerram uma insuperável contradição), menos ainda um Estado que se preocupa com a liberdade dos cidadãos. É, apenas e só, uma organização dotada de meios de violência eficazes, que os exerce, na melhor das probabilidades, em razão daquilo que os seus titulares sucessivos interpretam como sendo o interesse público. Muitas vezes, fazem-no assumidamente como coisa sua, conforme o demonstra a História europeia do século XX.
Numa sociedade liberal, o Estado não tem que existir como detentor monopolista da decisão pública, menos ainda deverá violentar aqueles a quem deve a sua existência. E podemos bem viver sem o modelo «soberanista» com que ele se configura, em benefício das «soberanias» individuais.
10 dezembro 2005
estado
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