O Novo Corporativismo na Saúde: Quando Ser Médico Já Não Chega
Portugal é um dos países com maior número de médicos per capita da Europa — um dado que, à primeira vista, deveria traduzir-se em acesso fácil e universal aos cuidados de saúde. Mas a realidade é bem diferente: mais de um milhão de portugueses continuam sem médico de família. O que explica esta contradição? Uma parte importante da resposta está num velho problema com roupagem nova: o corporativismo.
De Clínica Geral a Medicina Geral e Familiar: uma mudança com custos ocultos
Durante décadas, o país contou com milhares de médicos formados em Clínica Geral, que acompanharam gerações de doentes com dedicação e competência. Muitos desses profissionais, com vasta experiência, foram o alicerce do Serviço Nacional de Saúde. Porém, com a transformação da Clínica Geral em especialidade — agora chamada Medicina Geral e Familiar (MGF) — criou-se uma barreira artificial entre médicos com experiência e médicos com título.
O resultado? Um internista com trinta anos de prática, um médico reformado com milhares de consultas realizadas, ou um clínico geral com carreira longa no setor privado são hoje considerados "inaptos" para trabalhar num centro de saúde, simplesmente por não possuírem o selo da especialidade em MGF. Esta exclusão não se baseia em incompetência clínica, mas em falta de chancela burocrática.
O novo corporativismo: proteger o grupo, ignorar a realidade
Esta situação não é um mero acaso técnico. Ela representa a reedição moderna do velho corporativismo português— o mesmo que, historicamente, atribuiu privilégios profissionais por decreto, fechando o mercado a quem não fizesse parte da corporação certa.
Hoje, a nova corporação é composta pelos especialistas em MGF, cuja posição é reforçada por normas que excluem médicos igualmente capacitados, mas com um percurso diferente. Trata-se de uma forma de proteção de mercado que favorece um grupo restrito em detrimento do interesse público.
As consequências para os cidadãos
- Consultas por atribuir: Centros de saúde recusam médicos disponíveis, mesmo em zonas com falta crónica de profissionais.
- Desperdício de capital humano: Médicos reformados, internistas e clínicos gerais experientes são deixados de fora.
- Doentes sem acompanhamento regular: A ausência de médicos de família aumenta a pressão sobre urgências hospitalares e sobrecarrega o sistema.
E os utentes?
No meio deste labirinto administrativo e corporativo, estão os utentes — os únicos verdadeiramente desprotegidos. Num sistema racional, toda pessoa competente e disponível para exercer medicina básica deveria ser bem-vinda, especialmente em tempos de escassez. Mas em Portugal, o dogma da especialidade sobrepôs-se à razão, e os doentes pagam o preço.
É tempo de corrigir
Não se trata de desvalorizar a formação especializada em MGF, que é útil e meritória. Mas é necessário abrir exceções com critérios claros e objetivos:
- Reconhecer a experiência acumulada por médicos sem título formal.
- Integrar médicos reformados em regimes parciais ou supervisionados.
- Permitir que especialistas noutras áreas — como Medicina Interna — contribuam para os cuidados primários, sobretudo em regiões carenciadas.
A saúde não pode ser refém de carimbos administrativos nem de feudos profissionais. Enquanto o sistema for desenhado para proteger corporações e não cidadãos, o acesso à saúde continuará a ser um privilégio desigual.

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