(Continuação daqui)
42. À procura do crime
Admitindo, por um momento, que eu tinha pronunciado as afirmações que o juiz me atribuiu, subsistia a questão: "E onde é que está a ofensa?".
O juiz explica:
"Ora a liberdade de expressão não impede o arguido de qualificar profissionalmente os advogados da Cuatrecasas. Também não o impede de tecer comentários sobre a política de contratação de recursos humanos.
"Mas o arguido atinge o elemento central de qualquer sociedade de advogados: a defesa dos interesses do seu cliente. É o elemento mais central do prestígio de qualquer advogado: que, em cada momento, está totalmente empenhado na defesa dos interesses do seu cliente. Não há ataque pior que se possa fazer, para o prestígio de um advogado, do que afirmar que se orienta não pela defesa dos interesses do cliente (sejam interesses legítimos ou ilegítimos, morais ou imorais) e que, ao invés, prossegue interesses diversos. Negar esta esfera de proteção da reputação da assistente, seria negar-lhe qualquer direito a qualquer reputação. Ora, os direitos fundamentais não se podem anular totalmente".
Perpassa por toda a sentença condenatória uma atmosfera de defesa corporativa dos advogados que são vistos como uma espécie de casta com privilégios especiais e isentos das regras a que se sujeitam quaisquer outros profissionais e cidadãos, nomeadamente as que respeitam à liberdade crítica de expressão.
A relação de lealdade entre o advogado e o seu cliente é um princípio que se aplica a todas as profissões, ao médico, ao economista ou ao engenheiro. Não é exclusiva do advogado. Como princípio, infelizmente, é muitas vezes violado e a Ordem dos Advogados, como qualquer outra Ordem profissional, e ainda mais do que qualquer outra Ordem, recebe todos os anos milhares de queixas sobre a violação deste princípio.
Por outro lado, a expressão que aparece entre parêntesis - "sejam interesses legítimos ou ilegítimos, morais ou imorais" -, absolutizando ao extremo o princípio de lealdade entre advogado e cliente, permite toda a sorte de especulações, mesmo as mais ousadas: Então, se o cliente der instruções ao seu advogado para burlar ou matar o vizinho, o advogado vai executar o mandato?
A sentença prossegue insistindo em pôr na minha boca aquilo que eu não disse:
"Ao referir que a Cuatrecasas, em vez de proteger os interesses do Hospital de São João (seu cliente), produz documentos que prejudicam os interesses deste mas que beneficiam os interesses políticos de terceiros (a mão que lhe dá de comer), o arguido extravasa os limites da liberdade de expressão. A liberdade de expressão tem de ter um conteúdo, mas também não vale tudo. E o arguido sabe-o bem".
Continua:
"E o arguido sabia da falta de veracidade destes factos que imputava: que a Cuatrecasas, propositadamente, produzia documentos contra os interesses do Hospital de S. João para beneficiar uma terceira 'mão que lhe dá de comer'".
Seguem-se algumas considerações de natureza técnico-jurídica e o desfecho que se anunciava desde o início:
"O arguido praticou, assim, um crime de ofensa a pessoa colectiva, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 187º, nºs 1 e 2, al a), este último por referência ao artº 183º, nº 2, todos do Cód. Penal, perpetrado contra a sociedade e assistente Cuatrecasas".
Quer dizer, eu fui condenado não pelo "facto ilícito" que a Cuatrecasas me imputou - o de que atentei contra a sua reputação. O crime estava noutro facto, esse sim verdadeiramente ilícito, que eu tinha praticado e que só o juiz conseguiu descobrir - o de ter posto em causa a relação de confiança entre a Cuatrecasas e o seu cliente Hospital de S. João.
Está explicada a alteração não-substancial dos factos. O crime mantinha-se, o facto ilícito é que era outro. É o próprio juiz que explica como conseguiu chegar a esta conclusão verdadeiramente excepcional. Cito da sentença, p. 62 (ênfases meus):
"A referência à Cuatrecasas, na parte que é mais violenta em termos de percepção social (a palhaçada jurídica e os advogados de vão de escada) nem sequer se tratam de elementos ilícitos. É necessária uma análise fina e muito atenta da totalidade do comentário para, em tantas ideias, se conseguir verificar os factos ilícitos (...)"
Foi através de uma análise fina e muito atenta. Ainda hoje eu não consigo deixar de imaginar o juiz, o jantar na mesa a arrefecer, e ele, na sala ao lado, de olhos fixos no écran à procura do crime.
(Continua acolá)

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