(Continuação daqui)
41. Alteração não-substancial dos factos
Antes de proceder à leitura da sentença, o juiz anunciou que iria proceder a uma "alteração não-substancial dos factos", e disso deu conhecimento com uma certa solenidade a todos os presentes, incluindo o réu. Não dei grande importância ao assunto, primeiro, porque não sabia o que era aquilo, segundo porque já me tinha habituado a declarações solenes e falhas de conteúdo durante o julgamento. Cada declaração solene era uma impostura e esta, infelizmente, não iria ser diferente.
Só a iria compreender na totalidade dias depois quando tive acesso ao texto da sentença e pude inteirar-me do que era isso da "alteração não-substancial dos factos", uma matéria acerca da qual eu me sinto agora em condições de dar lições aos estudantes de Direito.
Suponhamos que a Quina, a venerável carteirista do Porto, vai a tribunal acusada do crime de furto por ter surripiado a carteira a um turista americano. Chega-se a tribunal e conclui-se que, afinal, aquilo que ela subtraiu ao turista, foi o relógio e não a carteira. O crime mantém-se (furto), o facto ilícito que lhe deu origem é que é diferente (o relógio em lugar da carteira). É nisto que consiste a "alteração não substancial dos factos": há uma alteração do facto ilícito que dá origem ao crime, mas o crime mantém-se o mesmo (furto).
As coisas começam lentamente a desenhar-se no meu espírito quando o juiz, depois de me absolver do crime de difamação agravada ao Rangel, passa ao crime de ofensa a pessoa colectiva, dizendo:
"Aqui, neste caso, já não estamos perante um homem político.
Por outro lado, a Cuatrecasas é uma empresa com notoriedade nos meios jurídicos, mas não numa visão global da sociedade. A população em geral, não relacionada com o mundo jurídico, não sabe que sociedade é esta. Por isso, não deve esta sociedade ser sequer colocada no mesmo âmbito de "uma figura pública". Não estamos a falar nem da TAP ou da CGD, que são conhecidas nacionalmente como uma qualquer estrela futebolística.
O âmbito de protecção é, por isso mesmo, diferente" .
Em seguida, o juiz passa em revista várias expressões que pronunciei no meu comentário - como "palhaçada jurídica", "promiscuidade entre a política e a advocacia", "advogado de vão-de-escada" - mas a nenhuma delas atribui importância, considerando que estão protegidas pelo direito à liberdade de expressão.
Até que chega o momento crucial, e passo a citar (os sublinhados são do próprio juiz):
"Mas há um ponto, em todo o comentário, que não pode ser analisado desta forma.
"Diz o arguido o seguinte:
'veio sob a forma de uma sociedade de advogados, Cuatrecasas, de que é Director o Dr. Paulo Rangel, político e eurodeputado do PSD.
Foi basicamente a produção deste documento pela sociedade de advogados de que é Director o Dr. Paulo Rangel que levou o Hospital de São João a paralisar a obra com medo das consequências, sobretudo um dos administradores que ficou muito preocupado. O presidente do Hospital é um grande entusiasta desta obra, mas uma das coisas que a sociedade de advogados Cuatrecasas, do Dr. Paulo Rangel, produziu foi dividir a administração do Hospital de S. João'.
"E depois concretiza melhor:
'"Como político anda certamente a angariar clientes para a sua sociedade de advogados, clientes sobretudo do Estado: Hospital de São João, Câmaras Municipais, Ministérios disto e Ministérios daquilo. Quando produzem um documento jurídico a questão que se põe é: este documento é um documento profissional, de um jurista profissional ou, pelo contrário, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer?
Tudo pode acontecer! E neste caso, desta palhaçada, é um documento político para compensar a mão que lhes dá de comer'
"O que o arguido com estas palavras afirma é só isto: o arguido afirma que a Cuatrecasas elaborou um documento propositadamente contra os interesses do seu próprio cliente (o Hospital de São João, que assim não iria beneficiar da "obra boa", como refere o arguido) com o objectivo de beneficiar 'uma mão política que lhe dá de comer'."
É altura de interromper a citação para chamar a atenção para esta frase crucial do juiz: "O que o arguido com estas palavras afirma é só isto: (...)".
Já se adivinha aqui o desfecho: eu vou ser condenado, não por aquilo que disse, mas por aquilo que não disse mas que o juiz me atribui, uma afirmação que o juiz me põe na boca, mas que eu nunca proferi. Um caso de "preso por ter cão e preso por não ter", "se não roubaste a carteira então roubaste o relógio".
(Continua acolá)

Sem comentários:
Enviar um comentário