02 maio 2025

CUATRECASAS - Uma Máfia Legal (27)

 (Continuação daqui)



27. A máfia


Portugal é um país de cultura profundamente católica e o nome da instituição que enformou essa cultura - a Igreja Católica -, significa, do grego, "comunidade universal". Seguindo o princípio cristão de que todos os homens são filhos do mesmo Pai, a Igreja - a Santa Madre Igreja, a figura teológica de Maria - é a Mãe que pretende unir toda a humanidade numa só família.

A família é, portanto, a instituição central da cultura católica e é com base nos valores prevalecentes na família que a Igreja procura organizar todas as outras instituições da sociedade. Esses valores são a autoridade, a hierarquia, a lealdade e a fraternidade (ou caridade cristã). São esses valores também que se encontram nas corporações, que são associações de interesses, de natureza profissional ou outros.

Na sua história recente, Portugal tem uma forte tradição corporativa. Salazar construiu o Estado Novo como um Estado Corporativo, seguindo as orientações da Encíclica Quadragesimo Anno (1931) do Papa Pio XI. Mas Salazar teve também o cuidado de criar instituições que regulavam o poder corporativo e o continham. O Ministério das Corporações era uma delas, mas a mais importante de todas era a Câmara Corporativa. Nenhuma lei era aprovada pela Assembleia Nacional sem passar primeiro pelo escrutínio da Câmara Corporativa onde estavam representadas todas as corporações do país, assim assegurando que nenhuma corporação conquistava privilégios que não estivessem também disponíveis para as outras.

A democracia veio acabar com estas instituições e deixou as corporações à solta, uma situação particularmente perigosa na justiça, tendo em conta o poder que as corporações judiciais  têm numa sociedade democrática, em que o poder judicial se constitui como um poder autónomo em relação aos outros poderes do Estado, o legislativo e o executivo. 

Foi esta liberdade dada pela democracia às corporações, conjugada com a autonomia do poder judicial, que permitiu às corporações judiciais - advogados, juízes, magistrados do Ministério Público - afastarem-se do fim para que foram criadas - a realização da justiça - e apropriarem-se do sistema de justiça em proveito próprio, tornando-se, em certos casos, verdadeiras corporações de criminosos, como é notoriamente o caso da Cuatrecasas. 

A cultura católica - uma palavra que, do grego, significa "universal" - é uma cultura de tudo. Tudo aquilo que há no mundo existe na cultura católica - caso contrário, ela não seria universal -, incluindo todos os exageros de que a humanidade é capaz. Um país de cultura católica é como um pêndulo, com uma grande amplitude de variação, que pode ir do oito até ao oitenta, e que exagera tão facilmente por defeito como por excesso.

Esta cultura tem no seu centro a família pelo que ocorre perguntar o que é que acontece se os valores da família forem tomados como absolutos e levados às suas últimas consequências? 

Acontece a máfia. A máfia é a instituição da família levada ao extremo. A máfia existe para mostrar à humanidade o que é que acontece se os valores prevalecentes na família - autoridade, hierarquia, lealdade e fraternidade - forem levados ao exagero. A máfia existe para mostrar como é que, pelo exagero, a mais preciosa instituição da humanidade, centrada no amor, se converte numa corporação de criminosos, centrada no ódio.

Não é por acaso que a máfia é frequentemente designada por "famiglia", e que o chefe da máfia é designado por "padrinho", uma versão do pai de família. As várias organizações mafiosas conhecidas, nasceram a partir de famílias que gradualmente foram estendendo os seus tentáculos. A Cuatrecasas também nasceu a partir de uma família e ainda hoje transporta na sua designação social o nome de família, que se tornou uma marca quase universal.  

Foi criada em 1917 por Emílio Cuatrecasas, um advogado de Barcelona. Sucedeu-lhe depois o filho, Pedro Cuatrecasas e, a partir de 1980, já com a Espanha em democracia e as corporações em rédea livre, sucedeu-lhe o neto, também de nome Emílio. Foi sob a presidência de Emílio Cuatrecasas (neto) que a Cuatrecasas se expandiu por toda a Espanha e por vários países da Europa (Portugal incluído) e da América Latina.

Como instituição genuinamente católica, não surpreende que a máfia tenha nascido no país que é a sede do catolicismo no mundo - a Itália. Se não fosse em Itália, a máfia só poderia ter nascido em mais dois outros países, Espanha e Portugal (ou em qualquer um dos seus respectivos descendentes na América Latina: Argentina, México, Brasil, etc.) porque a Espanha e Portugal foram historicamente, ainda mais do que a Itália, os dois mais fieis países católicos que existem no mundo.

Depois da revolta protestante do século XVI, enquanto a Igreja Católica perdia fiéis por todo o norte da Europa, e a Itália não era ainda sequer um país, mas um conjunto de cidades-Estado, foram a Espanha e Portugal, através da bravura dos seus missionários, sobretudo jesuítas, que espalharam o catolicismo pelos quatro cantos do mundo - na América Latina (hoje a capital do catolicismo), em África, até na Ásia. O país mais católico do mundo, pelo número de fieis é, curiosamente, descendente de Portugal - o Brasil.

A  máfia teve origem numa região específica do sul de Itália, a Sicília. É preciso recordar, porém, que durante dois séculos (1503-1713), a Sicília foi uma colónia de Espanha que é, coincidentemente, o país natal da Cuatrecasas.  E existe outra coincidência. Um dos mais conhecidos mafiosos da história foi Al Capone, um americano, filho de imigrantes italianos, que chefiava a máfia de Chicago nos anos de 1920, precisamente quando a Cuatrecasas dava os seus primeiros passos em Espanha.

A máfia de Chicago prosperou com o tráfico de bebidas alcoólicas, cujo consumo estava então proibido nos EUA - a célebre Prohibition -, e com a agiotagem, a prostituição e o negócio das apostas.  Foram atribuídos a Al Capone (também conhecido por "Scarface" devido a uma grande cicatriz que tinha na cara) imensos crimes, assassinatos, chantagens, intimidações, extorsões, violência armada, etc., mas nunca as autoridades conseguiram prendê-lo por qualquer destes crimes.

Al Capone acabaria por ser parado na sua actividade criminosa, e encarcerado na célebre prisão de Alcatraz, pelo crime de evasão fiscal, com uma pena de onze anos. Não deixa de ser curioso que Emílio Cuatrecasas, o presidente da sociedade com o mesmo nome, tenha sido parado da mesma maneira. Em 2015 foi condenado a dois anos de prisão pelo crime de evasão fiscal (uma pena mais tarde comutada em multa de quatro milhões de euros) e teve de renunciar à presidência da sociedade de advogados. 


(Continua acolá)

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