(Continuação daqui)
23. A malta do respeitinho
Certo dia, no final de uma sessão do julgamento, eu estava cá fora a falar com um jornalista que também era jurista. Os jornalistas são as pessoas mais visadas em processos por difamação como este. Eu estava a invocar-lhe a jurisprudência do TEDH e a minha certeza de que seria absolvido.
Ele interrompeu-me e disse, olhando de soslaio para o edifício do tribunal.
-Eu sei … eu sei… mas não se admire se for condenado aqui… porque esta é a malta do respeitinho...
Pois, a malta do respeitinho, em primeiro lugar, tinha de se dar ao respeito. Caso contrário, iria ficar sem respeito nenhum, como veio a acontecer.
A minha utilização convicta do sarcasmo e do humor para dar cabo dos meus acusadores fundava-se na jurisprudência do TEDH sobre o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direito do Homem (CEDH) que dava uma preponderância quase absoluta ao direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra, sobretudo quando estava em causa uma discussão de interesse público, como era o caso, e o visado era um político. Isto era assim relativamente ao Rangel porque, em relação à Cuatrecasas, era ainda melhor por duas razões. A primeira é que as sociedades não se ofendem; só as pessoas se podem ofender e as sociedades não são pessoas, são construções jurídicas. A segunda é que, tratando-se de uma sociedade de advogados, e sendo os advogados parte do poder judiciário, eles estão tão sujeitos à crítica quanto qualquer figura pública.
Uma versão simples desta jurisprudência, da autoria de Maria João Matos, professora no Centro de Estudos Judiciários, onde se formam os juízes, mostra claramente que o meu caso é um simples caso-de-escola, daqueles que se dão aos alunos do primeiro ano de Direito para exemplificar como as coisas funcionam na prática.
É a seguinte (ênfases meus):
1 - Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2 - O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
São os seguintes os princípios jurisprudenciais que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem foi fixando ao longo dos anos na interpretação do Artº 10º.
1. A liberdade de expressão é um fundamento essencial de uma sociedade democrática, e uma das condições primordiais do seu progresso e do direito de manifestação de cada um.
2. A liberdade de expressão vale não somente para as informações ou ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam
3. O exposto assume particular importância no domínio da liberdade de imprensa: se não deve ultrapassar certos limites (v.g. protecção da reputação e dos direitos de outrem; v.g. necessidade de impedir a divulgação de informações confidenciais), incumbe-lhe, contudo, comunicar - com respeito pelos seus deveres e responsabilidades – as informações e ideias sobre todos os assuntos de interesse geral.
4. Os limites da crítica aceitável são mais largos no caso de um político, ou de uma personalidade pública, em relação a um cidadão comum. Logo, a aplicação de sanções no contexto do debate político corre o risco de dissuadir os jornalistas de contribuir para a discussão pública de questões que interessem à vida da colectividade.
5. Tratando-se da imputação de factos, os jornalistas agem de boa fé e respeitam as regras deontológicas se se basearem em fontes credíveis, não lhes sendo exigível uma investigação autónoma, sob pena de ser ver diminuído o seu papel de controlo - cão de guarda. E tratando-se de juízos de valor, não poderá ser exigida a prova - por natureza impossível - da exceptio veritatis.
6. A protecção das fontes jornalísticas é uma das pedras angulares da liberdade de imprensa.
7. Numa sociedade democrática moderna todas as instituições do Estado - incluindo o poder judiciário - devem prestar contas à população; e esta tem o direito de se exprimir livremente sobre o seu eventual mau funcionamento.
8. Os limites previstos no nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem à liberdade de imprensa devem ser vistos como excepções, e interpretados de forma restritiva, sendo que a necessidade de qualquer ingerência deverá corresponder - de acordo com jurisprudência já sedimentada - a uma «necessidade social imperiosa» e ser «proporcional ao objectivo legítimo pretendido».
Fonte: Maria João Matos, "Liberdade de Expressão/Imprensa - Divergência face ao paradigma de julgamento nacional?", Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2013, pp. 102 e segs. (trata-se de um texto destinado à formação de juízes nesta matéria)
(Continua acolá)

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