22 maio 2025

A IRRELIGIÃO DO FUTURO




O Libertarianismo como Irreligião do Futuro: uma resposta ao vazio deixado pela erosão do sagrado tradicional


Uma Leitura à Luz de Jean-Marie Guyau


Introdução

A modernidade tem sido marcada por um processo de desacralização progressiva da ordem social. A religião, outrora centro normativo e simbólico das sociedades humanas, cede lugar à racionalidade científica, ao individualismo ético e à autonomia pessoal. Nesse contexto, Jean-Marie Guyau (1854–1888), um filósofo pouco lembrado mas intelectualmente vigoroso, antecipa, em L’irreligion de l’avenir (1886), a possibilidade de uma moral livre, sem dogmas, fundada na vida, na razão e na solidariedade espontânea.

Neste ensaio, propomos que o libertarianismo — entendido como filosofia política baseada na liberdade individual, na propriedade privada e no princípio de não-agressão — pode ser concebido como uma forma de "irreligião do futuro". Tal como Guyau anteviu uma ética sem religião, também o libertarianismo antecipa uma ordem social sem Estado coercivo, guiada por princípios racionais e voluntários.

 

1. A irreligião segundo Guyau: moral sem dogma, ética sem transcendência

Guyau não foi um niilista. Ao contrário de Nietzsche, seu contemporâneo, o filósofo francês via a decadência da religião não como catástrofe moral, mas como possibilidade de emancipação espiritual. A religião, segundo ele, não desaparece pela crítica externa, mas por esgotamento interno: perde a sua força vital, a sua capacidade de inspirar a ação. O que sobra é um conjunto de rituais vazios, incapazes de alimentar a vida moral dos indivíduos.

No lugar da religião tradicional, Guyau propõe uma ética fundada no sentimento vital de expansão, na empatia natural e na razão. Ele postula que os deveres morais emergem da própria vida: agir é expandir-se, viver é comunicar-se, e essa expansão espontânea gera responsabilidade, solidariedade e sentido. É uma espiritualidade imanente, sem necessidade de autoridade, dogma ou transcendência.

 

2. O libertarianismo como ética da liberdade racional

O libertarianismo, quando purgado de reducionismos económicos ou caricaturas ideológicas, revela-se uma teoria moral e política profundamente racional. À semelhança de Guyau, ele parte da soberania do indivíduo como ponto de partida ético: cada pessoa é fim em si mesma, não um meio para projetos coletivos, seculares ou sagrados.

O princípio de não-agressão — pilar do pensamento libertário — é uma tradução política da moral espontânea de Guyau: ninguém deve ser constrangido pela força a seguir um caminho que não escolheu, desde que não ameace os outros. Aqui não há lugar para a imposição moral do Estado, nem para o paternalis-mo religioso. A ordem social não nasce da autoridade, mas da livre cooperação.

Tal como a ética de Guyau não precisa de mandamentos revelados, o libertarianismo não precisa de um Leviatã. Ambos se fundam na vitalidade da ação individual, na inteligência da razão e na capacidade de viver em sociedade sem coerção.

 

3. Espiritualidade laica e responsabilidade pessoal

Guyau sustenta que a arte, a ciência e a filosofia podem substituir a religião como fontes de sentido. O libertarianismo oferece uma versão política dessa proposta: uma sociedade de indivíduos livres, criadores de valores e responsáveis pelos seus actos. Em vez de esperar pela salvação ou pela utopia estatal, o indivíduo libertário age, escolhe, constrói.

A ética libertária é, nesse sentido, uma forma de espiritualidade sem metafísica: ela não se apoia em dogmas, mas em princípios universais extraídos da razão e do respeito pelo outro. Ela recusa tanto a servidão do altar quanto a do trono. Assim, como a "irreligião do futuro", o libertarianismo não se limita a negar o sagrado institucional: ele propõe uma moral afirmativa, enraizada na liberdade como expressão da vida.

 

Conclusão

Se a religião do passado organizava a vida em torno do sagrado imposto, e se a irreligião do futuro segundo Guyau busca reorganizá-la em torno do vivido, do livre e do solidário, então o libertarianismo representa uma forma coerente e promissora dessa visão. Ele é a ética do indivíduo emancipado, não do crente submisso; é o ideal da ordem espontânea, não do dogma revelado.

O libertário, tal como o ético de Guyau, não precisa de um Deus para ser bom, nem de um Estado para ser justo. Sua bússola é a liberdade, sua prática é a responsabilidade, e sua fé é na dignidade do indivíduo autónomo. Nessa medida, o libertarianismo não é apenas uma teoria política: é, talvez, a expressão mais madura da irreligião por vir.

 

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