(Continuação daqui)
6. Um mecenas maluco
A Cuatrecasas levou para o julgamento catorze testemunhas e, a princípio, eu não percebi para quê. No fim de contas, os meus crimes, a existirem, estavam à vista de todos num comentário televisivo que ainda hoje está disponível na internet. Eu, pelo contrário, convencido que não tinha cometido crime nenhum, levei apenas uma testemunha, e mesmo essa só depois de muita insistência da minha advogada.
Em breve, eu compreenderia a primeira função dessa pequena multidão de testemunhas (onze das quais advogados) que, no blog Portugal Contemporâneo, eu viria a baptizar com o nome de "Armada" por referência à Invencível Armada do rei Filipe II de Espanha que, em 1588, estava Portugal sob o domínio espanhol, partiu de Lisboa, para ser vencida miseravelmente às mãos de um simples pirata inglês. Hoje, depois de derrotar a "Armada" da Cuatrecasas nos tribunais superiores, eu sinto-me um verdadeiro Francis Drake.
Logo na primeira sessão do julgamento, no intervalo do almoço, perante aquilo que se desenhava na sala do tribunal sob a batuta do Papá Encarnação, eu dirigi-me célere à minha advogada e com um trejeito na face, perguntei-lhe "O que é que eles querem com isto?". Ela, sussurrando-me ao ouvido, respondeu: "É a personalidade!". Foi então que se fez luz no meu espírito. Eles queriam fazer-me passar por maluco.
E conseguiram!
Nos finais de 2013, fiz uma conferência numa Igreja do Porto sobre um tema económico e, no final, uma senhora aproximou-se de mim, apresentou-se como sendo Ana Maria Príncipe, assessora do presidente do Hospital de S. João (HSJ). Disse-me que tinha apreciado muito a minha palestra e que eu era a pessoa ideal para assumir uma obra humanitária que desde 2009 procurava construir, por via mecenática, uma nova ala pediátrica no HSJ. Há anos que as crianças estavam internadas em contentores metálicos e o período da Troika que então o país atravessava só tornava mais remotas as possibilidades de o Estado vir a disponibilizar dinheiro público para a obra.
Acedi a encontrar-me com o presidente do HSJ e ficou combinado entre ambos que a Obra do Joãozinho seria continuada, mas de forma institucional, através de uma associação. Isso mesmo ficou gravado numa resolução do Conselho de Administração do HSJ em Dezembro de 2013:
O projecto "Um Lugar para o Joãozinho", visando a construção da ala pediátrica do Centro Hospitalar de S. João - Hospital Pediátrico Integrado, atingiu um nível de notoriedade que o torna irreversível. Importa, por isso, encontrar métodos de agilizar os processos e incrementar a angariação de fundos que permitam a concretização da obra. O início da construção da ala pediátrica constituirá uma forma de incentivara notoriedade e facilitar a obtenção dos meios adicionais necessários.
O Conselho de Administração do Centro Hospitalar de S. João congratula-se com a proposta apresentada. decide apoiá-la e considera-a de extrema utilidade para a prossecução dos objectivos estratégicos e assistenciais desta unidade de saúde.
Finalmente, considera que uma vez constituída a referida associação, deve propor a assinatura de um protocolo que formalize e regule as relações entre as duas entidades e estabeleça o modo como se concretizará o apoio do Centro Hospitalar à associação que vier a ser criada.
Porto, 13 de Dezembro de 2013
Em Janeiro de 2014, com a presença de um notário, no gabinete do presidente do HSJ, foi criada a Associação Joãozinho, tendo como sócios fundadores, entre outros, os cinco administradores do HSJ. A Direcção da Associação ficou constituída por mim, pela minha colaboradora de longa data, Fátima Pereira, na qualidade de tesoureira, e pela assessora do presidente do HSJ, Ana Maria Príncipe. O presidente do HSJ, António Ferreira, e o vice-presidente, João Oliveira, integravam também a Direcção como não-executivos.
A obra teve início no dia 3 de Março de 2015, após uma cerimónia protocolar de lançamento da primeira-pedra com a presença do primeiro-ministro Passos Coelho, do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, do secretário de Estado da Saúde, Manuel Teixeira, dos administradores do HSJ e de mais de uma centena de pessoas que encheram o auditório do Hospital.
Porém, três anos depois, a 12 de Junho de 2018, quando foi lida a sentença que me condenou por ofensas à Cuatrecasas no Tribunal Judicial de Matosinhos a realidade, afinal, era completamente diferente.
Escreveu o juiz João Manuel Teixeira a pp. 28-29 da sentença:
"Como o próprio arguido relatou (e é consensual), a determinado momento da sua vida entendeu que haveria de construir uma ala pediátrica no Hospital de S. João, porque já não aguentava ver as crianças internadas em barracões.
Quer dizer, ninguém me pediu, foi tudo iniciativa minha. Fui eu que, um dia, estando sozinho a matutar em casa sobre a condição das crianças internadas no HSJ - que eu nem sequer conhecia -, de repente dei um pulo do sofá e disse para quem me queria ouvir: "Vou fazer aquela obra!". A família tremeu e a minha mulher, consternada, disse baixinho para os filhos: "Ele hoje não tomou os medicamentos...".
Mas não apenas isso. Fui eu sozinho, trazendo atrás uns amigos, que fiz a Associação, pois o juiz prosseguiu, escrevendo:
"Formou então uma associação - o Joãozinho, da qual era o presidente, associação com utilidade pública (cfr. número 29B dos factos provados) - e predispôs-se a efectuar a obra, através da recolha de fundos de mecenas e da população em geral. O arguido confirmou estes mesmos aspectos no julgamento de forma segura a credível.
Eu devia, de facto, estar bastante maluco naquela altura. Mas agora, durante o julgamento, devia estar ainda pior, a maluqueira tinha atingido o clímax, porque - segundo o juiz - eu próprio, em tribunal, de forma segura e credível (sic) admiti como verdadeira toda aquela história de fantasia.
Continuou o juiz:
"Por indicação do Conselho de Administração do Hospital de São João, houve uma reunião, ainda em Fevereiro de 2014, em que participaram o arguido, membros da direcção do hospital, o assistente Paulo Castro Rangel e a testemunha Filipe Avides Moreira (estes dois últimos em nome da assistente Cuatrecasas, que prestava serviços jurídicos ao Hospital de S.João).
"Nenhum destes factos é controverso: estão de acordo arguido e assistente Paulo Castro Rangel.
A testemunha Filipe Avides Moreira explicou os esforços que a Cuatrecasas desenvolveu para erigirem o mecanismo jurídico que permitisse a uma associação particular, e por via mecenática, construir a obra.
"Fê-lo de forma coerente e detalhada, merecendo total credibilidade.
"Entretanto o arguido, como este explicou, queria iniciar a obra porque, à medida que a obra fosse sendo feita, os seus esforços para a angariação de fundos seriam mais frutíferos.
"Mas havia que efectuar um acordo, um esquema jurídico, que envolvesse o hospital (que iria ceder os terrenos para a construção), a associação Joãozinho (que iria pagar a ala pediátrica) e o consórcio de construtoras que a iria construir.
"Ora, é este acordo jurídico que está na base da discórdia".
Em suma, um dia, algures no início de 2014, condoído com a situação das crianças internadas no HSJ, deu-me na cabeça construir uma nova ala pediátrica. Criei uma associação que baptizei com o nome de Joãozinho, arranjei-lhe o estatuto de utilidade pública, contratei duas construtoras por 20,2 milhões e entrei por ali dentro sem pedir licença a ninguém.
Não se faz!
Até que fui parado pela administração do Hospital quando esta se deu conta - semanas depois de os trabalhos terem sido iniciados com a presença do primeiro-ministro - que, afinal, tinha intrusos lá dentro, duas construtoras a fazer a obra clandestinamente. Foi então que chamou a Cuatrecasas, como quem chama os bombeiros, porque isto de oferecer coisas ao Estado, ainda por cima não solicitadas, tem que se lhe diga. Era preciso um esquema jurídico. E foi aí que o fogo ateou.
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