(Continuação daqui)
5. Excepto a Cuatrecasas
Na altura, eu não pensei sequer nos riscos que corria.
Aos écrans de uma televisão, ainda que regional, eu dava regularmente conta dos progressos de uma obra mecenática que se destinava a crianças doentes. Volta-não-volta, um dia agora, umas semanas depois, voltava ao assunto, e pedia às pessoas que se juntassem à obra e contribuíssem.
O montante era elevado: 20 milhões de euros.
Embora sem nunca ter sido explícito, sendo o presidente da associação mecenática e tendo de dar o exemplo, quem me visse ao final de algumas semanas tirava uma conclusão óbvia, a saber, que eu tinha mais do que aquilo de que necessitava para viver, e queria dar uma parte.
A quem me perguntasse, ou mesmo a quem não me perguntasse, eu dava uma explicação: "Aquilo que sou e aquilo que tenho devo-o, em boa parte, aos portugueses. É altura de retribuir".
Nunca se sabe quem está a ver-nos do outro lado do écran. E só muito mais tarde me dei conta que tinha incorrido num grande risco - eu estava a atrair os ladrões.
Passados estes anos, qual o balanço que faço da experiência e do risco que tão inconscientemente assumi?
Francamente positivo.
O gang do Manaca, e alguns dos seus concorrentes, especializavam-se no assalto a palacetes. Ora, eu era sócio de uma empresa que tinha o meu nome, e cuja sede estava localizada num palacete na zona mais privilegiada da cidade do Porto - a Foz. O meu nome estava gravado na porta em letras gordas para que não houvesse dúvidas, em caso de problemas, quem era o responsável por tudo o que se passava lá dentro.
E era também uma informação para os ladrões, que ficavam a saber quem era o principal lesado da sua actividade naquele local. Pois, ao longo daquele período, o palacete, que nem sequer tinha segurança, nunca foi alvo de qualquer tentativa de assalto. Não houve sequer indícios de que alguém tivesse saltado o muro, menos ainda sinais de intrusão no edifício.
O gang do Manaca deve ter pensado - se alguma vez teve o desejo -, que assaltar aquele palacete era estar a assaltar crianças doentes, porque era lá dentro que a parte executiva da obra mecenática do Joãozinho se desenvolvia. E que tudo o que pudessem levar de lá, significava menos que ia parar às crianças.
E, depois, o que diriam os seus pares quando um dia fossem apanhados e se juntassem em Custóias?:
-Que gang que vocês são...a roubar dinheiro de crianças doentes!...
Não teriam uma vida fácil na prisão porque mesmo entre os gangs existe uma ética - "Há pessoas a quem não se rouba, certamente que não a crianças doentes".
O Gang dos Popós especializava-se em carros de luxo, de BMW's para cima, Mercedes, Ferraris, Porsches, Lamborghinis. Actuavam no grande Porto e devem-me ter seguido. Mas nunca me roubaram nenhum carro, e eu tinha dois.
À última da hora, a vontade não lhes devia faltar, mas até no Gang dos Popós existe compaixão: "Roubamos-lhe um popó, ele vai comprar outro, e lá fica menos dinheiro para os putos".
Ao contrário daquilo que a Cuatrecasas quis transmitir ao juiz durante o julgamento, eu não vivia numa moradia na Foz. Eu vivo desde 1999 num apartamento nos Pinhais da Foz, mesmo junto ao popular bairro da Pasteleira.
A malta da Pasteleira é feita de grandes portistas para quem o herói nacional era o Pinto da Costa, o homem que lhes dava algumas e as mais importantes das poucas alegrias que tinham na vida. Eram telespectadores habituais do Porto Canal. O segurança e a mulher da limpeza do meu prédio são da Pasteleira, e com ele eu cultivo ainda hoje, todos os dias, a grande rivalidade existente entre o Benfica e o F. C. Porto.
Pois nem da Pasteleira nem do Bairro do Aleixo, que fica a pouca distância, alguma vez veio alguém limpar o meu apartamento sem a minha autorização. E eles conheciam-me da televisão e de passarem por mim na rua. Sou amigo de alguns.
E a Quina, o que dizer da célebre Quina?
Do alto dos seus oitenta e tal anos, a Quina era na altura a carteirista mais famosa da cidade do Porto e vivia a seis ou sete quilómetros de minha casa.
Eu frequentava os mesmo lugares que ela, a Avenida dos Aliados, passeava nos Clérigos, jantava na Ribeira, atravessava a ponte até ao Cais de Gaia, fazia exercício físico em Francelos.
Estou certo que alguma das netas a quem ela presumivelmente andava a ensinar a arte, algum dia me teria topado e lhe dissera:
-Olha ali, avó...aquele senhor da televisão...
E ela:
-Não, filha... aquele senhor, não...
A neta:
-Porquê, avó?...
E a Quina:
-Olha, filha.. aquele senhor também tem netos...mas se algum deles ficar doente, vai de certeza para um hospital de luxo....ao passo que tu vais de certeza mas é para os barracões do S. João...
Apesar da inconsciência que cometi, e dos riscos a que me expus, a minha experiência, ao longo de todo aquele período, foi francamente positiva, e confirma tudo aquilo que eu sempre pensei acerca dos portugueses. Na generalidade, são excelentes pessoas. Nunca ninguém alguma vez aproveitou a minha exposição pública como presidente da Associação mecenática para me roubar.
Excepto a Cuatrecasas. Talvez por ser espanhola.
(Continua acolá)
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